Assim como não existe Kurosawa menor – nenhum filme do mestre é de segunda categoria – não pode existir reportagem sem grandeza. O tamanho não define a reportagem, mas sua intensidade e repercussão. Num país que já teve uma revista Realidade, e que viu brilhar experiências como Repórter Três, é preciso manter aceso o paradigma que gerou os mais brilhantes jornalistas.
ARAME FARPADO - Como esta coluna não é manual, mas sim arena minada de criação, pode-se trabalhar as deficiências e tropeços com extrema transparência, contando sempre com os recursos da Internet, que nos ajudam a fazer correções de rumo sempre que necessário, como tem acontecido às vezes aqui. Ontem, no apagar das luzes do dia, fiz acertos que mudaram para melhor os textos divulgados neste espaço (hoje também, mudei o final do parágrafo colocado embaixo da manchete, que estava muito mal escrito). No veículo impresso, ou mesmo no telejornal, essa baba não está disponível: você precisa acertar o alvo, sob pena de cair na tormentosa seção Erramos, ou mesmo expor-se como um Gugu Liberato à autocrítica avassaladora. É por isso que qualquer reportagem é importante: você não pode errar, o que significa equilibrar-se em arame farpado, sem rede de segurança, com uma platéia de leitores e coleguinhas açulando pelos cotovelos. Prepare-se. Reportagem sem grandeza não merece esse nome, é amontoado de palavras.
LINHAGEM – Saudosismo é iludir-se selecionando o que houve de melhor do passado, deixando de lado a dura realidade. Mas no caso das reportagens com grandeza, não há como confundir fato com ficção: Narciso Kalili, Hamilton Almeida Filho, Marcos Faerman, Caco Barcelos, Audálio Dantas, Edenilton Lampião, entre tantos outros, são representantes de um trabalho sem igual na imprensa brasileira e precisariam ser reunidos em uma coleção de livros didáticos. Coloquei Caco e Audálio na lista, que ainda estão na ativa, mas quis ressaltar o fato de que fazem parte de uma linhagem que praticamente está sumida. Hoje, quando vejo as reportagens traduzidas ocupando vastos espaços, me pergunto porque pessoas como o Fabio Murakawa, por exemplo, que fez um trabalho primoroso no Agora, ainda não foi convocado para exercer seu ofício de grande repórter numa imprensa que prima hoje pela falta de força. Temos quadros brilhantes na reportagem, mas poucos são convocados para o que realmente interessa: fazer a matéria dos nossos sonhos, detonar com informações valiosas e textos primorosos. Para isso é preciso recursos, apoio, faro. É preciso convocar o talento para que o paradigma, arduamente conquistado e desenvolvido em décadas de arrocho, não se perca de vez.
GIGANTES E NANICOS – Quando cito alguns jornais da imprensa alternativa da época da ditadura civil/militar (a civil continua), costumo surpreender. Só Opinião, Pasquim e Movimento são conhecidos, quando muito Versus. Mas tivemos também Ex, Mais Um, Presença, Coojornal, Bondinho, Já, Enfim. A lista é imensa. Sem falar de veículos que tiveram épocas magníficas, como Veja, Istoé, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, Correio da Manhã. Da imprensa nanica, a grande imprensa chupou a informalidade (que se transformou em sacanagem), a denúncia (que virou tráfico de influência), a tomada de posição (que se transformou em vitrine de vaidades politicamente corretas). Chupou e jogou fora: grandes repórteres foram para a praia, a montanha, o empreendedorismo (montar restaurantes) e as assessorias (punição para colocar as coisas nos seus devidos lugares). Um grande repórter no exílio é como um centroavante aposentado não pela idade, mas pela tabela. Nos Estados Unidos, grandes repórteres envelhecem na ativa e são cultuados pelas universidades e os novos jornalistas. Aqui, quando se fala em alguém do mesmo valor, pergunta-se: Quem?
TRABALHO – Uma reportagem dá trabalho. Não se trata de acumular informações, mas de selecionar e articular. Significa saber o que ela rende, que espaço deve ocupar, quais as fontes principais. Com a Internet, fica fácil evitar redundâncias, pois tudo está registrado no universo digital. Uma pesquisa prévia ajuda a selecionar o filé do assunto, a detectar pistas, a ir atrás do que realmente interessa. Ritmo e timing são fundamentais: entregar a matéria no prazo, criar um andamento poderoso no texto, compor reflexão com narrativa, ser enxuto sem ser seco, e passar a impressão, por meio da palavra no lugar certo, de que o texto diz menos do que o repórter sabe. Isso deixa o leitor com água na boca. Eu, por exemplo, sempre abro o jornal querendo ler mais uma daquelas reportagens que fizeram a alegria das minhas retinas tão cansadas. Acho até hoje que aqueles repórteres maravilhosos sabiam muito mais do que tinham escrito, e estavam guardando esse tesouro para a próxima edição.
RETORNO – Dizem que escrevo demais nesta coluna e que fica difícil ler tanta coisa. Não concordo. É que estou economizando trabalho futuro, pois quando o Diário da Fonte virar livro, já terei material suficiente para entregar para a editora, sem precisar ficar trabalhando indefinidamente nestes assuntos. Poderei partir para a praia, finalmente. Ou para a faculdade, como todos atualmente me sugerem. Ou para as duas coisas ao mesmo tempo.
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