28 de setembro de 2003

UMA ALIANÇA COM A TEORIA

Teorizar deve deixar de ser nome feio. A visão clara sobre a complexidade dos fatos é uma aliada decisiva no trabalho jornalístico, que precisa estar atualizado com as idéias e análises dos nossos melhores intelectuais. Por exemplo: qual a relação entre o artigo seminal de Roberto Schwarz, hoje, no Mais!, sobre Francisco de Oliveira, e o trabalho de alguns talentos da fotografia?

EM ESTADO DE DICIONÁRIO - Antes de fazer essa ligação entre Roberto Schwarz e Hélcio Toth, entre Francisco de Oliveira e Marcelo Min, entre Celso Furtado e Regina Agrella, entre Sérgio Buarque e Walter Firmo, entre Raymundo Faoro e U. Dettmar, quero destacar a vocação autóctene desta coluna, que divulgou ao longo dos últimos vinte dias uma série de conceitos sobre o exercício da profissão e que precisam ser recapitulados. Como a Internet é uma mídia simultânea, 24 horas no ar, não vou chover no molhado. Apenas lembrar que são fruto de reflexão própria as definições de “jornalismo-de-breque, esqueleto imantado, jogral das fontes, marketing da pressa, distribuidor de positivos, síndrome da moita, pauta rotativa e ditadura civil”. Além de bordões como “olho branco não reverte, o feminismo é fanho, credibilidade é a separação entre jornalismo e publicidade e não existe Kurosawa menor”. Faça um control F e descubra detalhes de todas essas sacadas, se for um leitor recente. Se estiver entre os dez privilegiados que acompanham a coluna desde o seu início, nem precisa.

VITRINES REAIS – A honestidade e o brilhantismo de Roberto Schwarz, o maior intelectual do país, autor do obrigatório “Um Mestre na periferia do capitalismo”, sobre Machado de Assis, é um privilégio para nosso país tão à mercê da mediocridade. Ele lança luzes seminais sobre o deslocamento existente no Brasil entre as idéias – vindas do exterior e assimiladaas à nossa feição – e a realidade espúria a qual pertencemos. Ele defende a tese de que esse deslocamento foi necessário para que, no século 19, o capitalismo desse certo no mundo, pois nosso atraso alavancou a prosperidade alheia. No artigo hoje do Mais!, o melhor caderno jornalístico do País, bênção dos domingos e festa do conhecimento, ele comenta a intensidade da tese de Chico de Oliveira sobre o fato de o petismo oficial ser a outra face da mesma moeda do pseudo-neoliberalismo tucano. Essa é uma teoria que, sem ser citado, vai nas águas do Raymundo Faoro, autor de “Os Donos do Poder”, sobre a hegemonia do estamento (a elite burocrática oficial) que mantém a mentalidade atrasada no Brasil atrelado ao colonialismo internacional.

MOTORES DA MISÉRIA - O que me chama a atenção para o trabalho de Francisco Oliveira, comentado brilhantemente por Schwarz, é o enfoque criativo sobre o papel da miséria do Brasil. O trabalhador informal, a pessoa que está fora do sistema produtivo legal e que constrói sua casa no mutirão e ganha o pão vendendo bugiganga nas ruas – ou produtos a preços acessíveis para uma população tão carente quanto ele – é que é o motor do desenvolvimento nacional. Já que indústria se contenta em ser reprodutora de know-how alheio, montadora de automóveis e radinhos, é na força produtiva dos marginalizados que o País encontra forças para seguir em frente. Pois isso tudo está no trabalho do Tomás May, do Marcelo Min, do Hélcio, da Regina e de tantos outros! São esses fotógrafos que estão no front e que bebem da mesma fonte que alimenta a teoria. Unam-se , portanto, criem vasos comunicantes entre si. O jornalismo obedece a uma teoria fajuta, dualista, em que uma parte do país ( a oficial) é enfocada com seriedade e a outra (a informal) é vista de cima para baixo, como se a primeira tivesse que repassar esmolas para a segunda. Pois é o Brasil de pé no chão, a que luta para sobreviver sem nenhum apoio e que tem sua cultura própria, sua dinâmica, e sua própria iconografia, que dá lições à economia formal. O buraco é muito mais embaixo e a água vem de baixo para cima. Os jornalistas precisam acessar o que há de mais criativo e fecundo na teoria para que as pautas deixem de ser babacas, tipo “veja que beleza essa ONG que preserva as tartarugas e ensina capoeira”. Ninguém quer esmola nem demonstrações de boa vontade. Queremos política justa, fim da corrupção e jornalismo sério. Pouca coisa.

RETORNO – Roberto Nogueira, jornalista ponta firme, atualmente em Brasília, escreve dizendo : “Estou me deliciando com o seu texto. Parabéns pelo blog. Os temas abordados são muito, muito atuais.” E o excelente poeta Mauro Mendes (jmaurom@terra.com.br), da Bahia, envia poema Náutica que acaba assim: “Velejarei num mar de versos,/ onde me reconheço,/ onde o campo é minado/ e cada palavra sabe a sua cicatriz.”

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