Para evitar que a pauta torne-se cíclica, repetindo-se todos os dias e, às vezes, na mesma edição, deve-se encará-la como indivíduo e não como espécie ou gênero. Descobrir pautas todos os dias é o nó cego da profissão, que precisa ser desatado com jeito, mais do que com força, na base do close-up, e não do plano geral.
CAVALO É OUTRA COISA – Implico com os americanos, que dividem as pessoas como se fossem cavalos: caucasiana, asiática ou hispânica. Como homem da fronteira, herdeiro portanto de uma luta de quatro séculos contra a “hispanidad”, fico muito fulo com o registro que os brasileiros ganham nos Estados Unidos, onde são confundidos com hispânicos (outra coisa que não existe, pois o que há são mexicanos, colombianos, argentinos etc.). E também com a tendência cultural hoje de nos identificar com a América Espanhola, o que tira nossa identidade fundamental, de América Portuguesa. Quando Carlinhos Brown torna-se Carlito Marrón ou quando Alexandre Pires coloca um chapéu para identificá-lo com o que chamam de hispânicos no fim dos Jogos Pan Americanos, estamos é abrindo mão do que temos de mais profundo, que é nossa língua e nossa História. É preciso ter cuidado com as espécies, como a “hispanidad”, que é poderosa, como notava o chanceler Oswaldo Aranha, também homem de fronteira. E enxergar nossa individualidade. Pertencemos não a uma categoria, ou a uma raça, mas a uma nação de indivíduos diversos.
BORGES – Quem notou a tragédia da pauta rotativa (mas não usou esse termo) foi Jorge Luis Borges (precisa obedecer o manual e dizer “escritor argentino”? acho que não). Ele reclamou da abordagem dos necrológios da imprensa sobre uma grande artista do seu país. Em vez de tratá-la como um indivíduo, escreveu Borges, a imprensa definiu-a como uma espécie, ou seja, como “mulher” que virou grande artista. “A mulher e...” é o exemplo típico de pauta rotativa. É como documentário sobre os anos 60: sempre aposto o momento certo em que o sonho vai acabar, pois há uma lei que obriga o sonho acabar em qualquer reportagem que se faça sobre o período. Esse tipo de enfoque, imagino, só sairá da reta aí pelo ano três mil pois virou cânone, não há como lutar contra. Quando estava na Fiesp, inúmeras vezes me sugeriram a pauta “a mulher e a indústria”. Eu argumentava que as mulheres apareciam sempre como empresárias ou pesquisadoras ou em qualquer outra atividade, e eram tratadas como são, ou seja, indivíduos com suas características próprias. O sexo ao qual pertencem não é suficiente para identificá-las.
PERGUNTAS - Pois então, onde o bicho pega? Como fazer pauta todos os dias, semanas, meses, anos, sem cair no lugar comum (outra pauta recorrente é “não-sei-o-quê-vira-mania”, muito comum em revistas)? Basta abrir as comportas, limpar os canais de acesso ao pauteiro (que não deve ser um, mas todos). Quem faz pauta deve ter uma percepção aberta, universal. Pauta é o que ninguém ainda abordou. Elas sobram no dia a dia, estão na cabeça das pessoas que nos rodeiam, são aqueles assuntos que não chamam atenção de tão óbvios e próximos e que jamais saem publicados. Pauta é também a pergunta que ninguém faz. O que realmente discutiram as duas personalidades antes da tragédia? Quem é de fato o decorador assassinado? Só existe matéria paga disfarçada de notícia no Paraná? Que tipo de produtor é esse que se comporta como espécie e planta em massa soja transgênica sabendo que está proibida?
A PRISÃO DO GANCHO – É um mau costume só fazer matéria sobre determinado assunto quando há algum evento justificando. É a prisão do gancho. Deve-se evitar o marketing da notícia. Precisamos deixar de obedecer à agenda proposta por consultorias, assessorias etc. Devemos ir diretamente na fonte, perguntar o que ela precisa saber, o que ela quer ler, o que ela tem a dizer, a propor. O jornalismo deve ser livre e essa liberdade começa na pauta. Na minha experiência como diretor de telejornal, via minhas pautas serem derrubadas em função do “barraco-que-caiu-na-Zona Leste”. Dizia: mas essa matéria já está na Globo; onde está a pauta sobre contaminação química do solo que a gente encaminhou? O chefe de reportagem derrubava, ou então o repórter, ou então o editor na ilha, ou ainda o apresentador e às vezes até o boy. Em compensação, todos estalavam os dedos dizendo que a TV era muito ágil e eu, um cara “da escrita”, não entendia nada. É por isso que até hoje, toda vez que estalam os dedos na minha frente, tenho urticária.
RETORNO - A jornalista Cibele Buoro, professora de comunicação, me escreve dizendo que está “repassando para os alunos” os textos desta coluna. Antes dela, a professora e jornalista Zélia Leal, da UNB, também tinha escrito dizendo que debateria minha nota sobre leads em aula. É uma honra para o Diário da Fonte ser avaliado pela meninada. Espero que o que escrevo aqui, fruto de longa experiência e reflexão sobre o que fazemos ou deixamos de fazer nas redações, seja útil para todas as gerações.
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