Reproduzo aqui a interpretação de Miguel Lobato Duclós (1978-2015) de um
dos livros de Clarice Lispector, onde ele usa o conhecimento teológico e
filosófico – conquistas árduas de sua curta e iluminada vida – pra devassar uma
obra muito celebrada. Miguel é pura desmedida: sabe muito e está sempre à
vontade para colocar seus mergulhos em palavras acessíveis, mas não menos
profundas. Um mestre da palavra, com uma obra infinita.
“AQUELE QUE NOMEIA”
Miguel Duclós
“O nome é algo importante na teologia. Basta lembrar que um
dos 10 mandamentos no Velho Testamento, o segundo, é o de não tomar o santo
nome de Deus em vão. Na tradição ocultista da Cabala, o Messias é aquele que
irá pronunciar o nome de Deus, dando início ao final dos tempos e o juízo
final. Os estudiosos da Cabala procuram os sinais ocultos nos manuscritos
originais do Torá para tentar encontrar o nome de Deus expresso na escrita.
Isso acontece porque quem nomeia adquire poder sobre o
nomeado. Pois cada ser tem uma parte sua infinita, ilimitada, perfeita, a
essência, e nomear é fechar isso em uma síntese, em um sistema, ou num elemento
deste, passível de ser representado e referido por uma “imagem”, sendo assim
reduzido. O nomeador é de certa forma, por esse mecanismo, “dono” daquilo que
nomeia.
Adão é aquele que nomeia. Vejamos os seguintes versículos do
Gênesis: (cap 2, 18-20)
“Da terra formou, pois, o Senhor Deus todos os animais o
campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem, para ver como lhes
chamaria; e tudo o que o homem chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome.
Assim o homem deu nomes a todos os animais domésticos, às
aves do céu e a todos os animais do campo; mas para o homem não se achava
ajudadora idônea.”
Agora vejamos os seguintes trechos do Alcorão, o livro
sagrado dos muçulmanos que, segundo eles próprios, corroba o Torá e o
Evangelho:
“Ele ensinou a Adão todos os nomes e depois apresentou-os
aos anjos e lhes falou: Nomeai-os para Mim e estiverdes certos
Disseram: Glorificado sejas! Não possuímos mais
conhecimentos além do que Tu nos proporcionaste, porque somente Tu és Prudente,
Sapientíssimo.
Ele ordenou: Ó Adão, revela-lhes os seus nomes. E quando ele
lhes revelou os seus nomes, asseverou (Deus): Não vos disse que conheço o
mistério dos céus e da terra, assim como o que manifestais e o que ocultais?
E quando dissemos aos anjos: Prostrai-vos ante Adão! Todos
se prostraram, exceto Lúcifer que, ensoberbecido, se negou, e incluiu-se entre
os incrédulos.”
Agora, vejamos o seguinte trecho do Fogo Interior de Carlos
Castaneda que vou citar do ebook em inglês:
“Don Juan
continued his explanation and said that in examining the first attention, the
new seers realized that all organic beings, except man, quiet down their
agitated trapped emanations so that those emanations can align themselves with
their matching ones outside.Human beings do not do that; instead, their first
attention takes an inventory of the Eagle’s emanations inside their cocoons.
“What is an
inventory, don Juan?” I asked.
“Human
beings take notice of the emanations they have inside their cocoons,” he
replied. “No other creatures do that. The moment the pressure from the
emanations at large fixates the emanations inside, the first attention begins
to watch itself. It notes everything about itself, or at least it tries to, in
whatever aberrant ways it can. This is the process seers call taking an
inventory.”
Falando em Castaneda, vale lembrar que os brujos do grupo do
Don Juan usavam todos nomes falsos, justamente para escapar do poder fixador da
história pessoal. Castaneda também o usou, uma época, inclusive com documentos
forjados, trabalhando como um cozinheiro fritador de hamburgens numa lanchonete
de beira de estrada. Grosso modo, podemos “associar” os três trechos citados
entre si.
O que eu percebi hoje que nunca tinha me ocorrido é que a música
Simpathy for the Devil, dos Rolling Stones, tem em seu refrão o verso “Please
to meet you / Hope you guess my name”Ou seja, existem pelo menos duas ironias,
ao meu ver conscientes, expostas nesse poema. A mais óbvia é que o “devil” da
letra está zombando e desafiando o poder de Adão de nomear, “com o guess my
name”. Temos que considerar também que diabo é uma das palavras com mais
sinônimos no dicionário, justamente porque não é considerado de bom agouro
nomeá-lo. Aliás, no mundo fictício do Harry Potter, o vilão Lord Valdemort é às
vezes referido como “você-sabe-quem”.
A outra ironia está na palavra “hope” (esperança) . O homem
tem a esperança e a fé de que vai alcançar a salvação.
Lúcifer é a estrela da manhã, segundo os versos de Isaías. O
que não é comumente considerado é que o tempo celeste não se efetivaria como
uma linha de tempo justaposta, mas antes dialógica e diacrônica. Ou seja, não
em um ponto X da “história” Lúcifer foi expulso do céu e deixou de ser anjo
desde então. Mas antes, é uma história inscrita na alma diante de dois opostos
que significam o afastamento ou presença de Deus no ser, por conta dos
“pecados”. Em um dos polos, Lúcifer continuaria sendo o Anjo bom, e no outro, o
rei de um mundo de sombras, ou seja, um deus do inferno, que é inferno porque
não há essência. Alguns consideram que o Apocalipse não virá em algum ano x da
história, mas antes que já aconteceu e acontece várias vezes, já que o tempo é
figurado, é algo que o homem teria que enfrentar “fenomenologicamente” e a cada
vez na configuração de sua alma.
O nome é importante na obra literária A Hora da Estrela da
escritora Clarice Lispector. Tanto que a personagem principal se chama Macabéa,
que é uma clara referência à Bíblia (Macabeus). Aliás, antes de nomeá-la, o
ficctício narrador Rodrigo S.M tece uma série de considerandos, dando um peso
extra ao ato de nomear um personagem. As referências religiosas permeiam todo o
texto. O título “A hora da estrela” é comumente considerado, de forma infantil,
devido ao atropelamento da personagem, que aglomera uma porção de gente ao
redor e por isso, nesse breve instante teria se tornado uma “estrela” e deixado
de ser anônimo. Ora, ao meu ver isso não é correto. O livro se chama a Hora da
Estrela porque é a hora que Lúcifer vence a força de vida da protagonista,
fechando sobre ela um ciclo mórbido que acaba por ser seu fim, justo no momento
em que ela “abre os olhos” para o que está acontecendo na sua vida, orientada
pela vidente.
No famoso versículo sobre o príncipe da Babilônia associado
a Lúcifer, em Isaías 14 ele é chamado de “estrela da manhã” (um dos apelidos
também do planeta vênus). Lúcifer é a estrela da manhã. Vejamos o seguinte
trecho da obra:
“E tem mais! Um dinheiro grande vai lhe entrar pela porta
adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro. Você conhece algum
estrangeiro?
– Não senhora – disse Macabéa já desanimando.
– Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou
verde ou castanhos ou pretos. E se não fosse porque você gosta de seu
ex-namorado, esse gringo ia namorar você. Não! Não! Não! Agora estou vendo
outra coisa (explosão) e apesar de não ver muito claro estou também ouvindo a
voz de meu guia: esse estrangeiro parece se chamar Hans, e é ele quem vai se
casar com você! Ele tem muito dinheiro, todos os gringos são ricos. Se não me
engano, e nunca me engano, ele vai lhe dar muito amor e você, minha
enjeitadinha, vai se vestir com veludo e cetim e até casaco de pele vai ganhar!”
Na coleta de mitos populares, é comum associar Lúcifer ao
“anjo galã”, o gostosão, senhor das hordas infernais, que seduz as mulheres e
as transforma em bruxas, para navegar por mundos paralelos.
A cartomante, porém, erra o alvo, embora acerte alguma coisa
na sua predição. Mais adiante lemos que
“E sou sempre sincera: por exemplo, acabei de ter a
franqueza de dizer para aquela moça que saiu daqui que ela ia ser
atropelada,ela até chorou muito, viu os olhos avermelhados dela?”
Ou seja, ela previu que alguém ia ser atropelado, mas não
acertou quem. Macabéa terá o encontro com esse “estrangeiro” que irá mudar a
vida dela. O encontro se dá no atropelamento. A autora não podia ser mais clara
ao dizer quem ele é, já que diz textualmente mais adiante:
“Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música antiga de
palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa sente um fundo
enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar
algo luminoso. Estrela de mil pontas.O que é que estou vendo agora e que me
assusta? Vejo que ela vomitou. um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago
tocando no âmago: vitória!E então – então o súbito grito estertorado de uma
gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o
macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.
Até tu, Brutus?!Sim, foi este o modo como eu quis anunciar
que – que Macabéa morreu. Vencera o Príncipe
das Trevas. Enfim a coroação.” (grifo meu)
A estrela de mil pontas, o “algo luminoso” de que vale a
autora, pode também ser a sua força de vida, o seu brilho, que embora estivesse
acuado, existia, e precisava de apoio – que não vinha – e possibilidade de se
desenvolver e fixar. Vale lembrar que a autora escreveu esse livro quando já
estava doente, quase desenganada, em 1977, daí o tom niilista.
O texto todo é permeado pelo vazio existencial, ou seja, a
falta de essência, e a repetição. O inferno, na mitologia semita, é a repetição
do errado, que leva ao afastamento da essência, até que se resolva a questão do
pecado, e se ache a saída. (Por exemplo expiar os pecados no pugagatório). Esse
o sentido aliás da “Rádio Minuto”. Aliás, o livro tem uma “Hora” no título, e a
rádio é de “minutos”, ou seja, os pequenos episódios dos minutos da vida de
Macabéa são todos fechados quando a hora, que é dona dos minutos, completa seu
ciclo e fecha em cima do signo da estrela. Quando a cartomante, que lhe abre os
olhos, dá as pistas de que seus canais de saída estavam se fechando, especialmente
com a perda do namorado e a futura perda do emprego.
Mais que denunciar, o livro encarna os preconceitos de
classe. A falta material coincide com a falta espiritual. Ou seja, ela é
incapaz de enxergar a riqueza na pobreza. A mesma riqueza que permite, por
exemplo, que aconteça uma finíssima arte popular, como o Rio de Janeiro sempre
provou. O preconceito contra nordestinos aparece várias vezes. Olímpico mata
alguém no “confim do sertão” e passa vaselina no cabelo que as “cariocas acham
nojento”. O sonho dele é apenas participar da classe média no “sul”. Um dos
pontos desnecessários do texto ( o outro ao meu ver foi ela ter se mijado no
zoológico – ) é que Olímpico, por ter matado alguém com faca, fica excitado com
açougue e a carne fatiada, mas gosta da amiga da Macabéa porque o pai dela é
açougueiro. Essa amiga (Glória) tem “bamboleio do caminhar por causa do sangue
africano escondido”. Isso ao meu ver é simples preconceito da escritora, junto
com o fato de Olímpico se perguntar se ela “é loira embaixo também”. Mas tudo
redunda no protesto mudo contra a exclusão, a mediocridade na exclusão. Quer
dizer, realização espiritual para ela é ter os preceitos da vida burguesa:
acesso à educação e cultura burguesa, às comidas, ao casamento – modelo de
família burguês, e um bom emprego.
Tudo bem, mas aí quem não está dentro disso vai para o
inferno? Parece meio forçado. O tom é proposital, irônico e desalentado. Talvez
por isso que o livro seja patrocinado pela Coca-cola, como ela coloca no
início. A riqueza do livro não está no enredo, mas na discussão que o narrador
faz sobre a linguagem. Que, tenho que admitir, ela usa com maestria. A
construção do texto é tão forte e bem elaborada que você não sente vontade de
largar o livro antes de terminá-lo, o que não é difícil, já que é um texto bem
curto. (Miguel Lobato Duclós em 28 de abril de 2006.)
Miguel Lobato Duclós, leia também no link
http://blog.cybershark.net/miguel/2006/04/28/aquele-que-nomeia/
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