O sentimento de pertença ao Brasil e seu antagonismo à
invasão cultural americana é um dos pontos fortes da obra de Miguel Lobato
Duclós (1978-2015) no seu blog http://blog.cybershark.net/miguel/ . Sintomaticamente, seu
ultimo post, de 2014, refere-se ao vexame brasileiro diante da Alemanha, num
esquema que agora esta sendo denunciado como de corrupção.
Na sua missão autoral, Miguel abordava profundamente os
filmes que lhe diziam respeito, que o impactavam, sem atentar para o fato de
serem cults ou não. Entre tanta superficialidade, em que a Sétima Arte foi
reduzida a um desfile de celebridades artificiais, cada palavra de Miguel era
um libelo, sem cair no denuncismo, já que amparava sua percepção em leituras
fundamentais.
No texto a seguir, de 11 de novembro de 2004, ele aborda a
obra do cineasta Lars Von Trier como a representação ao que a América foi
reduzida na era Bush. Uma aguda análise do momento em que vivíamos na época e
que se mantém firme apesar das mudanças aparentes.
“DOGVILLE”
MIGUEL DUCLÓS
“Dogville é o primeiro filme do cineasta dinamarquês Lars
Von Trier de uma trilogia sobre os Estados Unidos. A construção cenográfica do
filme chamou a atenção por sua forma peculiar, teatral, bretchiana. Quase todas
as tomadas foram feitas na primeira tentativa e não há externas, somente um
cenário onde estão desenhados no chão, com giz, os contornos das ruas e casas
da pequena cidade em que se desenrola a história. Esse esforço minimalista gera
uma extenuação, um desconforto, por parte de quem assiste, forçando-nos a utilizar
uma parte de nossa atenção a que não estamos acostumados: pausada, contínua,
avessa à fragmentação publicitária. Também a carga dramática das atuações dos
atores é maximizada, pois eles são praticamente tudo o que você vê na tela. O
filme tem sido saudado pelos cinéfilos como uma grata novidade e a melhor coisa
que se produziu nos últimos anos.
A história gira em torno de Grace (Nicole Kidman), uma moça
que chega fugindo da máfia a uma cidadezinha do interior, causando tremenda
controvérsia. Depois de uma reunião da Igreja, apoiada pelo seu amigo filósofo
Tom, ela consegue a acolhida e proteção da cidade, mas em troca tem de prestar
pequenos serviços para a comunidade. O problema é que os habitantes começam a
exagerar na carga, usando-se livremente do trabalho quase escravo de Grace e
por fim abusando sexualmente – um tema recorrente nos filmes dos cineastas do
Dogma-, humilhando e prendendo-a fisicamente, num quadro crescente de crueldade
e hipocrisia. O pequeno espaço físico da cidade se torna uma prisão
caustificante, de fuga difícil. Grace a tudo se submete, até que, ao final, seu
pai mafioso chega a cidade e a traz de volta, metralhando e incediando todos os
habitantes, menos o cão, também uma figura no chão do qual só se ouve o latido.
O filme é complexo e sua interpretação é difícil. Uma
leitura possível é tomar Dogville como um microcosmo da América, inicialmente
associada aos valores de liberdade, proteção, livre-iniciativa, com uma
constituição assentada em firmes bases filosóficas. Um lugar onde o estrangeiro
pode chegar, e contando com o “verdadeiro capitalismo” ascender através do seu
próprio esforço e trabalho. Mas aos poucos essa origem se torna um simulacro
diante de acontecimentos desastrosos, e no entanto o mesmo discurso continua a
imperar, como na retórica de Bush de ser um enviado que garante a liberdade no
mundo. A única coisa capaz de manter esse quadro de injustiça e ainda assim
continuar advogar para si seu discurso original seria a crescente hipocrisia da
sociedade americana, que reelegeu Bush mesmo apesar de suas fraudes e mentiras,
depois de quase destituir Clinton por uma simples mentira ao Senado.
Dog seria então anagrama de God, e Grace (graça) o anjo
enviado para testar. A mensagem do filme e a redenção final, então, é quase religiosa.
Os Eua perderam-se e prenderam-se em seu próprio autocentrismo, criando um
pequeno mundo claustofóbrico e oprimindo o mundo com isso, como bem mostra o
artigo de Nei Duclós O Círculo de giz da América. Mas a abertura existe, e a
chegada do mafioso os reduz a pó, apesar dos protestos de Grace, que diz que
“eles não sabem o que fazem”.
A vila é, então, como um tipo de atenção humana, uma
armadilha que se torna intensa e opressiva, dando a impressão de ser tudo o que
existe, de não haver alternativa.
Significativo são as projeções finais do filme, onde
aparecem retratos da américa em depressão na década de caipira, provinciada,
decadente. O som ao fundo é o “Young Americans” de David Bowie, que lembra a
relativa juventude dos EUA em relação a história e situação absolutamente
inédita, também recente, de uma única potência efetivamente global querendo
fazer valer seu império. Restaria saber quem vai cumprir o papel atribuído ao
pai de Grace. Talvez, num viés político, uma velha Europa que até agora tem aceitado
o papel de coadjuvante, ou se considerarmos a devoção religiosa do “monge”
Trier, a saída seja apontada pelo próprio Deus.
Nicole é uma estrela de Hollywood que foi trazida de seu
mundinho para a vida (ir)real por Stanley Kubrick, em “De Olhos Bem Fechados, e
desde então vem fazendo filmes de arte. O filme de Kubrick é toda uma denúncia
sobre a pseudo-elite que ocupa as páginas do noticiário, atraindo a atenção de
todos, no filme emblematizado pelo casal protagonista, mas podendo ser qualquer
juiz, governante (Bush), personalidade a quem se atribui poder, mas que são na
verdade como “laranjas” ou bodes expiatórios. O verdadeiro poder, a verdadeira
elite, aponta o diretor, são verdadeiramente secretos e algo muito mais
extensos, louco e manipulador do que se pensa. Uma realidade paralela do qual
só pode se entrar através da mensagem cifrada, de olhos vendados, onde
trabalham aqueles que aprisionaram o mundo num sistema de rotina que consome
toda a nossa energia, mas que se diverte e não precisa se preocupar com esse
sistema que criaram, falso e contrário a natureza humana.
De qualquer forma, Dogville parece ter entendido o recado da
importância do cinema americano como porta voz da América e seus valores e
usa-se do mesmo artíficio da linguagem cifrada, só que através de uma linguagem
muito mais sofisticada que torna a simbologia tradicional dos filmes americanos
quase caricata.” (Miguel Duclós)
http://blog.cybershark.net/miguel/2004/11/11/dogville/
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