A justiça, a poesia, o teatro, a virtude: nos autores
fundamentais da filosofia, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) trabalha conceitos esclarecedores sobre os
dons civilizatórios do conhecimento. Decifrar as artes da pintura ou da palavra
com o poder da crítica em favor da sobriedade.
Hoje, véspera da sua missa de
Trigésimo Dia (será amanhã, dia 21/11/2015, às 16 horas na igreja de Santo Antonio, no centro de
Florianópolis), a dor de sua perda permanece intacta. Não há consolo. Só silêncio,
leitura e oração, dedicados ao filósofo que tanto buscou saber para que
possamos ser melhores do que somos.
http://www.consciencia.org/platao_republica.shtml
"A CRÍTICA DE PLATÃO AO TEATRO
E A HOMERO COMO EDUCADOR"
POR MIGUEL DUCLÓS
"No início do livro
X da República, Platão classifica a poesia e a pintura como imitação (mimesis),
no interior de sua teoria acerca de uma cidade perfeita, imaginada de forma a
ser justa. Platão diz que os poetas, como imitadores, não tem conhecimento
sobre aquilo que imitam, e fazem uma brincadeira sem seriedade. A poesia e a
pintura, para o autor, estão três pontos afastadas da realidade.
O tema central de
A República é a justiça, se ela existe por si, ou se é relativa, como queria o
sofista Trasímaco no livro I. O
argumento do livro se desenrola quando Sócrates e os irmãos de Platão, Glauco e
Adimanto, se propõe a imaginar uma cidade ideal, onde haveria justiça. Ao
contrário dos diálogos de juventude de Platão, chamados aporéticos, A República
oferece soluções e definições para os problemas tratados, no decorrer da
exposição de Sócrates sobre a doutrina das Formas (ou Idéias). Em 351 a, por
exemplo a justiça é definida como sabedoria e virtude, e em 540 e, o mais alto
e necessário dos bens. Para entender a significação deste, porém, teríamos de
discorrer sobre toda a formulação platônica acerca da areté (virtude), que é
parte da temática central de sua obra e ponto importantíssimo de todo
pensamento grego. Obviamente, tais almejos não cabem aqui.
Pelo fato de o
livro I de A República tratar do tema da justiça de uma forma aporética (ou
seja, sem solução), alguns comentadores quiseram que esta parte do tratado
fosse tomada como um diálogo à parte, feito na juventude de Platão. Tais
diálogos, como o Lísis, o Mênon, o Cármides e Lacques, também falhavam ao
tentar a definição universal para outras virtudes, respectivamente a amizade, a
virtude mesma, a temperança e a coragem.
No livro I, a exemplo
do que ocorrer nos diálogos acima citados, Sócrates através do questionamento
das hipóteses falsas, também recusa uma série de opiniões de seus convivas, a
saber "a justiça é restituir a cada
um o que se tomou, dar a cada um o que se lhe deve, e a justiça é o interesse
do mais forte".
No tratamento da
solução da questão se a justiça é intrinsecamente boa, se existe por si, surge
no interior do diálogo o não menos importante tema da educação. É necessário
conjeturar qual seria a melhor formação para incentivar cidadãos justos, visto
que a justiça pertence a toda a cidade. Assim, há uma passagem do indivíduo
para a cidade na medida em que vendo o surgimento da cidade, veria-se também
aonde nasce nela a injustiça. Platão diz que as cidades nascem da associação de
indivíduos que executam tarefas diferentes e complementares. Cada indivíduo
deve praticar uma arte, de acordo com as suas inclinações naturais. (Há que se
lembrar aqui o mito de Prometeu e Epimeteu no Protágoras, que expõe a opinião
do sofista de que a justiça, ao contrários dos demais saberes e artes, foi
distribuída pelos deuses de forma equânime, para que possam a sociedade ocorrer
e os homens não se matarem uns aos outros). Só para concluir esta nota inicial,
gostaria de lembrar que a importância de Platão, e mais especificamente da
República no ensino e na educação são monumentais. Partindo de uma crítica à
educação até então feita com base em Homero (como nos conta Xenofonte), Platão
criou uma espécie de centro de estudos superiores, a Academia, que junto com o
Liceu de Aristóteles ditaram por muito tempo a maior parte do saber científico
ocidental. A se somar a isso temos o tratamento igualitário dado por Platão à
educação das mulheres. Graças à República, as mulheres puderam ir na escola e o
ensino público, sustentado pelo estado, foi instituído.
Mas no texto, que
procura analisar o trecho da República que vai de 602c – 605c iremos tratar
basicamente da questão das partes da alma,
e a qual parte da alma os espetáculos se dirigem. Para isso, é
necessário recorrer ao livro IV, aonde Platão primeiramente trata o
assunto. O livro IV apresenta três
partes da alma, a parte concupiscível, a
parte irascível, e a parte racional. A parte dos apetites é o que faz o homem
obedecer, é mesmo o maior elemento da alma humana. É ela que obriga a pessoa a
beber, se tem sede, comer, se tem fome, desesperar-se, se tem medo. A parte
racional é a parte superior da alma, que deve ser responsável pelo comando e
pelo cálculo, e pelo homem agüentar firme a imposição das paixões, desejos e
apetites. Platão diz que muitos não chegam a alcançar a razão, e outros só o
fazem em idade avançada. A parte irascível, se não foi corrompida por uma má
educação, pode ajudar a razão a governar, e assisti-la. A ira é inicialmente posta por Glaucon no
meio da parte concupiscível, mas Sócrates observa que muitas vezes ela vai
contra os desejos, como quando uma
pessoa suporta a fome e o sede pois se
sente vítima da injustiça. As paixões são contrárias à razão, e muitas vezes
quando elas nos forçam a fazer algo contra a razão, o homem censura a si mesmo,
se irritando e lutando contra aquilo. Assim sendo, o elemento irascível pode
ser positivo se aliado à razão, como um Pastor e seu cão. Platão observa que as
crianças já nascem cheias de irascibilidade, mas se a razão conduz e controla,
a cólera é legítima. A educação pela música e a ginástica harmoniza estas
partes.
As três partes da
alma estariam presentes nos indivíduos e na cidade. A cólera e a razão, unidas, devem dominar o
elemento concupiscível, que geralmente, é a maior parte da alma. O elemento concupiscível é o responsável pelo insaciabilidade de riquezas e prazeres corporais. Quando ele
está dominando o indivíduo, diz-se que a pessoa é escrava de si. Quando o
elemento racional, que é o melhor, está dominando, diz-se que a pessoa é
senhora de si. estes ditados grosseiros, para Platão, são vestígios da virtude
na fala comum.
A parte racional
deve deliberar, e a irascível obedecer as ordens com coragem. A razão estaria
presente em maior grau no guardião, a parte irascível nos guerreiros. Lembrando que existem três castas na cidade
de Platão, a dos artífices, a dos guerreiros e a dos guardiões. Aqui é
necessário fazer uma pequena regressão para entender o tema da virtude e sua
relação com cada casta da cidade. Na República, são quatro as virtudes cardeais:
sabedoria, coragem, temperança e justiça.
A cidade perfeita de Platão, para ser boa, necessita apresentar estas
quatro virtudes. Vejamos cada uma delas.
O sábio é aquele
que, por causa da ciência, pondera bem. Mas não é qualquer ciência a dos sábios,
como a do marceneiro, agricultor, ou carpinteiro. Na cidade de Platão, a
ciência do sábio é a da vigilância, da presidência e chefia, e esta só se
encontra na última casta, a dos guardiões. (428e) Sendo assim, a virtude da
sabedoria é algo que ocorre raramente, pois os guardiões são em número
resumidíssimo. Os guardiões são aqueles que passaram por sucessivos testes ao
longo da vida, sendo cada vez mais selecionados, só chegando a ocupar seu posto
na maturidade.
A coragem é uma
virtude, para Sócrates, que se alcança através da educação. Um animal ou
bárbaro que apresente bravura numa luta não é corajoso. Pois é por meio da
educação que se conserva a coragem mesmo diante de todas as vicissitudes, e
consegue-se manter uma opinião legítima do que se deve ou não recear, mesmo em
meio aos desgostos, prazeres, desejos e temores. A coragem se encontraria principalmente na
segunda casta, a dos guerreiros.
A temperança, é
uma ordenação, o domínio dos desejos e prazeres. Estes, existem em grande
número nas crianças, mulheres e escravos, mas os sentimentos moderados,
dirigidos pelo raciocínio conjugado com o entendimento, só existem nos de
natureza superior, formados pela educação superior. Mas a cidade de Platão,
contudo, é temperante por inteira, pois nela a melhor parte governa a pior. A
temperança, ao contrário das outras virtudes, existe harmonicamente em toda a
sociedade. Ela é a harmonia, a concórdia, entre os naturalmente melhores e os
naturalmente piores, que sabem todos quem deve comandar. A temperança existe
devido à harmonia entre as partes da alma e da cidade, que concordam que é a
razão que deve governar, e não se revoltam contra ela.
Por último,
Sócrates trata da justiça, e descobre que já estava tratando dela já há algum
tempo. Em Platão é recorrente o tema de uma espécie de predestinação, do
indivíduo ter uma inclinação natural por destino. Isto aparece, por exemplo em
Mênon, e em Protágoras. Lá se conclui que o indivíduo pode perseguir a virtude,
mas em última instância só alcançará a virtude aquele que tiver recebido um bom
quinhão da divindade. As moiras, ou parcas, são as deusas responsáveis pela
distribuição da parte, da cota de cada um. Elas aparecem no final da República,
durante a narração do mito de Er. Esta
porção recebida das moiras no momento em que a alma vai voltar para a terra, é
em grande grau pelo possível sucesso de cada pessoa ao alcançar a virtude.
Estas deusas, tecelãs do destino seriam
deusas supremas, as quais até os outros deuses estariam subordinados a elas.
Desde o início do
diálogo, Platão havia assentado que cada um deve ocupar uma, e apenas uma
função na cidade: aquela pela qual é sua natureza é melhor inclinada. Este foi
o motivo, por exemplo, de se fazer um exército com a função exclusiva de guardar
a cidade, ao invés de se formar o exército com o corpo de cidadãos quando se
faz necessário. Platão acredita que cada pessoa é capaz de exercer bem somente
uma profissão de cada vez. Evitar que cada um detenha os bens alheios, e
executar sua tarefa adequada, sem se meter na tarefa dos outros, é a
justiça. Mas esta divisão severa de
tarefas é válida somente enquanto preserva as castas. Ou seja, um carpinteiro,
se revelar aptidão, pode perfeitamente fazer o trabalho de um sapateiro, mas se
conseguir juntar dinheiro exercendo ambos os ofícios, e por causa disso
conseguir ascender de classe, passando para a dos guerreiros, mesmo sendo
indigno de tal, isto será uma injustiça, e causa da ruína da cidade.
A justiça diz
respeito à uma atividade interna do homem, aquilo que ele verdadeiramente é. A
justiça não deve permitir que qualquer uma das partes internas da alma se
dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas das outras. A justiça
consiste em dispor, de acordo com a natureza, os elementos da alma, para serem
dominados ou dominar uns aos outros. A injustiça é resultado de uma ação
conduzida pela ignorância, que leva à ingerência, à sedição dos elementos da alma, fazendo os
elementos da alma governar uns aos outros não de acordo com a natureza. .
No início do livro
X de A República, Platão expõe que a
mimesis pode representar apenas um aspecto, seja ele frontal ou lateral
de um objeto, e nunca o objeto como o todo. Sendo assim, a mimesis está ligada
do múltiplo sensível, e não ao ser. É
portanto contrária à ciência, pois trata do oposto do que é. Os poetas, segundo
Havelock, tinham por função a manutenção das tradições orais. A educação pela
poesia visava manter o ethos, entendido como um enunciado lingüístico acerca da
lei pública e privada. Platão faz uma analogia entre a atividade mimética dos
pintores e os poetas, pois estes tratavam de diversos assuntos diferentes, da
virtude e das coisas divinas, sendo mesmo uma enciclopédia tribal. Platão
conclui que a mimesis dos poetas é uma imitação de um simulacro da virtude.
Platão procura
determinar, então, sobre qual parte do
homem a mimesis exerce atração.
Ele verifica que,
freqüentemente nossa alma se encontra em confusão, como quando a ilusão da
ótica comunica informações contraditórias acerca de objetos idênticos, por
exemplo, ao observar um objeto dentro da água e fora dela. ou quando os objetos
são distorcidos pela sinuosidade das superfícies coloridas e pela distância.
Mas a parte racional da alma inventou o cálculo, que
retifica por meio da medida e do número estas confusões, evitando a
contradição. Sendo assim, não é a percepção subjetiva de um objeto parecer ao mesmo tempo maior e menor, mas sim
a medida estabelecida que deve prevalecer.
Aqui vemos a visão
de Platão de que os sentidos conduzem à ilusão. Platão tira de Heráclito a
noção de que todas as coisas sensíveis estão em perpétuo estado de fluxo. Em 602d Sócrates lembra que haviam assentado,
já no livro V, que é impossível ter opiniões contrárias acerca do mesmo objeto.
Ou seja, para Sócrates não é válido a proposição Heracletiana, exposta no
fragmento 49 a, a de que é possível ser e não ser ao mesmo tempo. Também na
página 152 a de Teeteto, Platão comenta a famosa afirmação de Protágoras, a de
que o homem é a medida de todas as coisas, da existência das que existem e da
não existência das que não existem. O filósofo explica que acontece, por vezes,
de uns sentirem o frio e outros não, sob o mesmo vento. O vento pode ao mesmo
tempo ser frio para uns e normal para outros. É contra este tipo de relativismo
que Platão diz, no livro X da República que se criaram o cálculo e a medida. A
medição, o cálculo e a pesagem são auxiliares preciosos contra a aparência das
coisas. É por isso que a aritmética e a geometria ocupa uma central na educação dos cidadãos da
República. O cálculo é trabalho do logos, que está na alma. Em 533c, Platão
afirma que, eu cito “o método dialético
é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do
autêntico princípio, afim de tornar seguros os seus resultados, e que realmente
arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está
atolado, e eleva-os à altura”. fim da citação
É a ascese dialética do espírito que leva à contemplação da Idéia do
Bem, idéia suprema que torna o mundo inteligível. O método dialético apreende a
essência das coisas.
A atividade
poética, quando permite a contradição, faz parte de uma função de uma faculdade
da alma que é contrária à ciência, pois se baseia no relato físico, sensível,
que é alheio ao número e ao
cálculo. Logo, mimesis está ligada à
pior parte da alma, a parte das paixões, que não tem em vista nada a de
verdadeiro, e só foge ao bom senso. O amante de espetáculos, na interpretação
de Havelock, é contrário ao tipo de saber intelectual que Platão ligava ao Ser.
Tal como foi definido no livro V, o amante de espetáculo é ligado ao amigo da
opinião, philodoxos, que amam imagens e sons belos, mas não sabem o que é a beleza
em si. Este estado mental da opinião é um estado intermediário entre a ciência
de um lado e a inconsciência de outro. Leva à confusão mental contínua, pois
aquele que ama imagens e sons vive fazendo juízos contraditórios acerca da mesma coisa. Na discussão do
capítulo V, Platão havia concluído que a alma está cheia de contradições de
toda espécie, e elas aparecem com força
na poesia mimética, que imita “homens
entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que em conseqüência de as terem
praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em
todas estas circunstâncias” . Na poesia mimética, não o homem está a mercê de
suas paixões, ou seja, não é a parte racional que comanda, mas sim a parte
concupiscente.
O homem comedido,
que tem a razão no comando, suporta desgraças como perder o filho muito melhor
do que os outros. Esta continuidade de
caráter, que permite aos homens manter um alheamento crítico, é avesso às
paixões, e tema constante da filosofia. Cícero, por exemplo, diz em seu diálogo
sobre a amizade, que Aquele que, se mostra firme, constante e inflexível, deve
ser considerado raro e quase divino.
No Banquete de Platão, em 176c, os companheiros de Sócrates
observam que ele é capaz de beber a quantidade de vinho que for sem se
embebedar, o que representa bem este domínios dos apetites e do corpo, que
seria indispensável para os guardiões. Em 413d da República, por exemplo, os
candidatos a guardiões são submetidos a trabalhos, sofrimentos e lutas, e
transpostos de terrores a prazeres, para
que seja observada as suas reações e ver se eles mudam de opinião facilmente.
Platão prossegue
dizendo que uma pessoa luta e resiste mais quando sendo observada do que quando
está sozinha, pois quando ela está sozinha pode perfeitamente dizer e fazer
coisas que se envergonharia se estivesse na presença de terceiros. Numa situação ruim, o que impele o homem a
resistir é a razão e a lei, mesmo que auxiliada pela cólera, e o que o arrasta
para a dor é a aflição. O homem deve fazer o que a lei manda, mesmo ante o
turbilhão de adversidades e aparências dos sentidos, deve tentar endireitar
suas posições e fazer o que a razão manda. Deve acostumar a alma a curar o mais
rapidamente possível o que caiu e adoeceu.
A pior parte de
nós quer recordar o sofrimento, e gemer sem cessar. Isto é associado com a
atitude egocêntrica de uma criança que berra sem parar, e esta parte da alma é
irracional, e leva à covardia.
Platão conclui
este movimento dizendo que o poeta imitador está sempre a forjar fantasias, a
uma enorme distância da verdade."
Miguel Lobato Duclós (1978-2015), leia também no link
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