7 de novembro de 2015

PATRIOTISMO EM FILME CULT?



No dia 22 de agosto de 2004, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) publicou este texto sobre o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, no seu blog, que ele manteve por dez anos (2004-2014), um espaço virtual separado do seu megasite Consciencia. Uma análise com todos os elementos da sua formação, escrita de maneira clara e criativa, cruzando obras e situações, analisando o filme e o ambiente onde ele era difundido, a sala de cinema. Marca do filósofo que nos deixou esse enorme legado.

APOCALIPSE NOW

Miguel Duclós

“Muitas vezes ir ao cinema pode ser algo desconfortável ao invés de relaxante, em certo sentido. O isolamento, a acústica, a escuridão e a tela grande contribuem para que você modifique sua atenção e se concentre no filme, se envolvendo. É por isso que é irritante a cultura do cinema de shopping, em que muitas vezes não há respeito por esse ritual, com pessoas fazendo barulho ou comendo ruidosamente.

Na entrada do cinema do CiC, em Florianópolis, existe um aviso na porta : “É expressamente proibido entrar na sala com pipocas, balas, ou qualquer tipo de comida”. Lembramos com isso do clássico aviso ao pórtico da Academia de Platão: “Que aqui não adentre quem não souber matemática”. Dentro da sala, enormes cartazes de filmes cult como “Flauta Mágica” e “Paris Texas” criam uma atmosfera que convida ao silêncio e consideração. No entanto, sabemos que o modelo de cinema de shopping vem ganhando, e a qualidade e investimento nas salas é inegavelmente maior. Em São Paulo, vários shoppings passaram e exibir também em suas salas filmes do “circuito de arte”. Mas ainda pecam por conta de aspectos comerciais, como a inserção excessiva de trailers.

O transe cinematográfico, então, faz com que você sinta a atuação dos atores e as imagens de forma muito mais viva que na TV. Muitas vezes, ao sair da sala, enfrento um choque de realidade, e o espaço físico me parece diferente de quando eu entrei. Raro é o momento em que consigo me identificar com os personagens, muitas vezes deixo que manipulem minhas emoções e que a trama me leve, mas com uma certa desconfiança em relação a isso.

Essa sensação sumiu por completo quando, em Apocalypse Now Redux, de Coppola, entrou em cena o ator Marlon Brando interpretando o general Kurtz. Melhor ainda com sua forma e fronte largas, Brando profere seu discurso lento, pausado, que Martin Sheen tem de ouvir apoteoticamente, depois de todo clima de mistério criado pela narrativa. É como se Kurtz já conhecesse todas as questões que inquietassem o personagem de Sheen, e soubesse a resposta para elas. Por isso, a consideração de Kurtz – um tirano – com o oficial Benjamin é importante, já que o discurso de Brando acaba com as ilusões existentes e inaugura uma nova ordem e sentido, dando significação e profundidade à existência.

Mas temos de pensar também se o filme escapa do americanismo ou não. Considerado por muitos um libelo contra a insanidade da guerra do Vietnã, que sacrificou uma geração de jovens. Dissemos em outro post que a vida do ocidental, por algum motivo misterioso, vale mais do que a de outros povos. O que temos? As entranhas da selva, para além de todos vestígio da civilização é o não-lugar do terceiro mundo, dos países pouco conhecidos e de nomes estranhos, onde os valores ocidentais custam a chegar. Lá, um branco é adorado como um deus por uma legião de “quase-selvagens”, o que nos lembra os casos de dominação tecnológica e cultural contra os índios durante a Conquista.

Sheen não tem muito prestígio no exército, um oficial com problemas. Brando tinha uma carreira brilhante no exército, sendo altamente condecorado. Ele é o bom-mocinho americano que se desviou, e por isso deve ser punido com a morte. Abstraindo da apocalipse final do filme, para além de toda insanidade e ironia, podemos descatacar que ele efetivamente é morto, ou seja, o plano da alta cúpula do exército se cumpriu, e toda as descobertas profundas de Kurtz, a força da mitologia e do culto que criou, se perdem. A abertura espiritual se esvai em sangue derramado. Os “selvagens” nada fazem contra isso, apenas observam, passivamente, Sheen sair silenciosamente da aldeia no final.

No caso do romance Coração das Trevas de Joseph Conrad, temos ao invés do exército americano o império inglês, obrigado, para alcançar mundialidade, a subjugar os povos em lugares distantes e inóspitos. Mas o filme escapa da armadilha dessa acusação, já que trata de temas universais, como a fragilidade da normalidade humana em meio à vastidão do mundo e a grande dificuldade que encontramos para prosseguir quando nos desvencilhamos de nossa visão comum de mundo recebida socialmente. E, consequentemente, a aparente impossibilidade de escape, de revolta. Esse é o tema central tambémm de “Laranja Mecânica” de Kubrick.

O fato é que, se cofirmarmos a suspeita de patriotismo, o filme representa o que este tem de melhor. Como Jimi Hendrix, que avassala o hino Star Spangled Banner em Woodstock por puro amor a pátria. Os EUA são um país com tradição de abertura fantástica, que gerou mitos como Hendrix e Dylan, além de inúmeras vanguardas de comportamento e ativismo político, essa coisa da Califórnia e de Nova York. A questão que colocamos é como foi possível que esse espírito se perdesse e a direita conservadora texana passasse a dar as cartas de um imperialismo monoglota, unilateral, autoritário e repressor?

Nesse post usei conversas feitas com Nei Duclós e André Abath.”

MIGUEL DUCLÓS

RETORNO - http://blog.cybershark.net/miguel/2004/08/22/apocalypse-now/

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