30 de setembro de 2013

QUANDO FORMOS EMBORA



Nei Duclós

Quando formos embora, nossos rostos dirão ao futuro: estávamos em rede, noturnos.

Foi quando nos conhecemos, diremos. Pelo menos, estávamos um na porta do outro, como vizinhos.

Resgatamos infância, escrevemos memórias, construímos pontes e por ela trafegamos, de olho no despenhadeiro

Foi uma viagem, de luz e sonho. Depois, nos perdemos. Fomos sumindo, como as estrelas quando o sol traz a demolição do tempo

Mas ficou esse clima de algo feito. Um abraço entre sombras, uns amores sem rumo. Coisas humanas, daquele tempo.

Quando formos embora, não seremos lembrança, mas móveis de uma geração estranha: cadeiras de vime, luar na varanda, cidades em crise

Não teremos contato, criança de um novo cosmo. Seremos esquecidos, mas pulsantes. Somos a borda resistente de um buraco negro.

Escute a guitarra, o batuque, a sinfônica. Seremos nós, riso aberto numa platéia de anjos.


RETORNO -  Imagem desta edição: foto de Marga Cendón

HABITAT



Nei Duclós

Música. Faz falta.
Habita o espírito, devolve a esperança,
salva o mundo, pelo menos por alguns minutos.
É suficiente. Quem precisa de salvação eternamente?
Um toque no coração e desperta o sentimento.
Escute a canção, a criação, o instrumento.
Volte no tempo, viaje para frente.
Música. É o que a Terra pede no presente.

28 de setembro de 2013

O TAMBOR E O VIOLINO



Nei Duclós

Todo som é ruído
todo silêncio, segredo
se desconheço, eu grito
se não escuto, adormeço

Acorde lota o ouvido
desarranjo em sinfonia
mudar como de endereço?
o tambor sobre o violino

Letra que leva à sílaba
frase de amor na aldeia
rebento salta perdido
pique de voo na vela

Cifrei o texto encardido
molhei a pluma na tinta
desperdicei pergaminho
sobrou o pólen de vidro

Salvei o perfil de mármore
era uma estátua vizinha
inaugurei por pirraça
a praça frente ao castelo


RETORNO - Imagem desata edição: Marilyn Monroe fotografada por Philippe Halsman.

OS OUTROS



Nei Duclós

Passado, presente, futuro: o tempo é prisioneiro de si mesmo. Vento, chuva, sol e vento: o clima é a sua liberdade.

Os outros não te incomodam. O que incomoda é a raiva que os outros te fazem sentir.

"Vai ficar parado aí do sofá" é a senha para o fuzilamento sumário.

Auto-ajuda é um narrador auto-suficiente que ao culpar cada um dos indivíduos da platéia. soluciona seu próprio fluxo de caixa.

Se alguém aconselha o que você acaba de dizer é porque o interlocutor quer te sacanear.

Quando dizem "mais do que nunca" significa que nunca é sempre de menos?

Ainda está aí?! perguntei, ansioso, para o ponteiro dos minutos. Levo o tempo que quiser para seguir em frente, disse ele.

Quando negam o que estão declarando é porque estão fazendo aquilo que negam. "Não é que eu esteja mentindo dizendo isso, mas..."

Quando dizem "essa é uma boa pergunta" é porque a resposta será canonizada?

Quando dizem "isso veremos mais adiante" significa que o texto não sairá do lugar?

Se o que for considerado obrigatório não passa de supérfluo,o que é taxado como supérfluo seria obrigatoriamente obrigatório?

Se ignorarmos tudo o que for anunciado como imperdível sairíamos perdendo ou ganhando?

O Brasil é como a mosca com uma asa decepada, fica rodopiando num lugar só.

Tenho dez camisas idênticas mas só uso uma, disse o andarilho.

A esperança é a resignação que aposta na profecia. A ambição é a desesperança que entrou para o crime.

Agora durma, disse o dia seguinte.


VIAGEM DE PERFUME



Nei Duclós

Viajas por mim com teu perfume. Soltas o pó de fada em meu convite. Dizes sim sem dizer nada.

Passei o dia contigo. Lembrar-te é o meu abrigo.

Já se foi o tempo. O dia sumiu no ralo, deixou de fora os cabelos, nosso balanço do efêmero.

Não tenha medo, o terreno é firme. Só existe nós, universo oculto.

Te mostras fora de foco. Te guardas sob a neblina. O meu olhar se embacia. Vibro com tua chuva.

Me tiras o ar para me deixar no vácuo, onde perco o contato com as leis físicas e matemáticas.

Penso em ti, mas faz de conta que estou ocupado. Quem me vê acha que despacho. Mas sou ministro sem pasta diante de ti, beldade.

Viajaste para o Oriente. Me trouxeste um presente. Tu mesma, glória da vida

Querida que silencia. Cultivas meu sonho oculto. Somos nossa fantasia

Tão pertinha me enchia de mimos. Éramos tão separados. Mas ficou o visgo.

Literatura não faz parte do rodízio. Situa-se onde não fica. Num outro mundo, sob camadas de espelho.

Cada vez que te escuto minhas florestas se agitam.

Complica o verbo sem rumo, esperto nos seus estudos, aprende quando desiste, ensina se estiver pronto.

A noite leva para lugar nenhum, a não ser que o acaso te ponha em meu caminho.

Pulei em ti quando menos esperavas. Estavas distraída com a mesmice dos encontros.
Hora do êxtase. Solte os cachorros.

Vênus agora sozinha curte a solidão do seu brilho no horizonte da noite fria.

Estás perdida. Achei o que procuravas.

Falo por cartazes antigos, rabiscados de versos livres. Às vezes uma palavra cruza uma paisagem que já não existe. E retorna nas mãos de uma surpresa.

Uma hora alguém derrapa na curva. Cai no agito que vira sossego. Mergulho de peito.

Esse grude que dura o tempo todo e volta cheio de calor. Nem sabemos do que se trata, mas é bom.

A tarde voou, no piso liso do tempo. Escorregamos para a noite, com seu vórtice de assombros.

Deus fez o homem do barro e lhe soprou uma alma imortal, a mulher.

Somos como o crepúsculo. Dia e noite quase se tocando.

Tinha esquecido de ser mulher, ela disse. Tua palavra faz misérias comigo. Sei que é sem querer, bandido.

Estás além da minha fantasia. Por mais que eu te invente, voas soberana.

Fazemos tudo ao contrário. Nos submetemos na política e nos revoltamos no amor.

Pouso é compromisso do voo quando decola.

Mulher é que gosta de poesia, disse o machão. Por isso mesmo, disse o poeta.

Deixamos para mais tarde o que nos desperta cedo.

Tenho um coração criminoso, uma psicopatia amorosa: te quero de todas as formas, floração da serra.