1 de julho de 2013

MARCO ROZA NO MIOLO DO DRAMA



Nei Duclós

O escritor MARCO ROZA me concedeu esta entrevista sobre seu romance OS VITRAIS DA SALA À PROVA DE SOM. O impacto da leitura deste livro, que aborda personagens marcados pela tortura no Brasil, me levou a perguntar as raízes dessa relação profunda entre o autor e o tema. Entendi a  resposta como um aviso: todos estamos envolvidos nesse drama, e não como espectadores. Fazemos parte dele e só a coragem expressa na literatura pode dar a dimensão real do estrago feito não apenas no físico, mas no imaginário do país. A seguir, a entrevista com o autor.

P - Qual a relação entre tua vida pessoal e o assunto do livro? Por que escolheu o tema da tortura para teu romance?

R - Tortura, infelizmente, é uma prática universal. A encontramos em todas as culturas e épocas. Em todas as classes sociais, mas especialmente como uma prática adotada quase que com naturalidade para confirmar o que seria desnecessário, ou seja, a superioridade de um grupo sobre o outro, de uma autoridade policial contra os presos já presos, do homem forte contra a mulher ou contra a criança, mais fracas. Vivi de perto como criança muito pobre essa onipresença da tortura através dos espancamentos adotados arbitrariamente pelos meus pais, pelos adultos nos locais em que eu trabalhava (comecei com 8 anos a trabalhar como ajudante numa serralheria). Me tornei adolescente trabalhando como faxineiro na Faculdade de Filosofia e Letras de Juiz de Fora, da UFJF, e acompanhava as discussões subterrâneas no diretório acadêmico (que eu limpava) e pude comparar os espancamentos que eu era vítima com as porradas que os jovens estudantes recebiam quando eram presos. Fui descobrindo também uma certa indiferença com a tortura e com os espancamentos, algo que a gente não gosta de lembrar depois que supera o sofrimento e o constrangimento de ter sido usado, vilipendiado, humilhado e ofendido, e que faz crescer uma cicatriz inversa, para dentro da gente. Percebi também que o tema tortura era sempre tratado pelos aspectos mais racionalmente contundentes o que, acredito, cria uma rejeição imediata nas pessoas, pois é muito difícil racionalizar a tortura. Por isso, achei que com um pouco mais de poesia e de transcendência poderia reposicionar o tema tão universal, tão eterno, tão presente.
     
P -  A estrutura do livro obedece à simultaneidade narrativa, que pode ser lida tanto,linearmente quanto salteada. Por que decidiu contar essa história dessa maneira? Há algum modelo, alguma referência para essa escolha?

R - Minha inspiração direta é "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar. Mas depois de ter lido "O jogo da Amarelinha" várias vezes, percebi que até mesmo o livro dele poderia ser lido na ordem que a gente escolhesse, em vez de se submeter às sugestões que ele faz ao fim de cada capítulo. Daí ter criado um livro que é uma autoreferência continuada, num loop que associei ao DNA, sempre expandindo, mas recriando e se recriando a cada leitura. Além disso, minha parcial formação como Físico (estudei dois anos e nunca mais parei de me dedicar ao tema) Física na PUC-Rio me ajudou a imaginar o leitor como complemento do livro. Algo óbvio mas que para arriscar a construir requer uma certa indiferença pelo eventual acerto e foi isso o que me motivou.

P - Quais tuas preferências literárias?  Teus autores favoritos? Eles influenciaram em Vitrais?

R - Eu sou uma esponja de livros, de ideias, de ouvir conversas alheias. Busco (talvez pelo vício de um quase cientista que tentei ser) o algoritmo que emerge das falas, das almas, dos desencontros, das rotinas, dos conflitos, dos discursos. Me exercito profundamente para não me perder no Pleroma que nos rodeia e nos ameaça submeter e reduzir a nada, como descreve Jung em "Sete Sermões aos Mortos". Convivo com romances, teses científicas, obras espirituais, Candomblé, Umbanda, Virgínia Wolf, Musashi, Faulkner, Arthur Koestler, Joyce, Balzac, Gorki, Tchekov, Fritjof Capra, James Gleick, The Interpreter's Bible, Don Quixote, Borges (que faço uma homenagem no último parágrafo do livro) etc. A lista é imensa.

P - Personagens do livro são criações baseadas em pessoas reais, ou são pura criação literária?

R - Meu caro qual é a pessoa real que não é ao mesmo tempo, enquanto vive, uma criação literária dos nossos arquétipos ancestrais? Quem consegue ou conseguiu escapar?

P - Qual a expectativa que tens em relação à repercussão do livro neste momento em que se mexe profundamente nos porões da tortura? Qual a relação que vês entre teu romance e a Comissão da Verdade?

P - Não tenho nenhuma expectativa. As pessoas que foram vítimas da tortura ou que não mais querem a tortura do Estado tratam o assunto racionalmente, através da formulação das leis, da busca da legítima Justiça. Que apoio. Mas a tortura besta, que corrói almas e as misturam com suor, sangue, vômito e fezes ainda continua aí permanente, no noticiário nosso de cada dia com as milhares de mulheres espancadas e mortas; com as crianças espancadas a ponto de preferir morar na rua, onde também são espancadas pelos adultos e pelos representantes do Estado. Dentro das prisões, a tortura é adotada pelos carcereiros e pelos próprios presos. Tortura é, como disse, universal, onipresente. E a adotamos como fosse uma entidade mítica que pelo que entendo é quase necessária na suas desumanidade exatamente para nos confirmar humanos. Hasta quando?

P - Há uma carga forte de escatologia nos capítulos do livro, relacionada com a exposição das vísceras de uma dor política e social profunda. Como conseguiu dosar esse aspecto rude e pesado com a emoção transmitida pelas pessoas envolvidas na narração?

R - Me senti absolutamente incapaz de reproduzir os efeitos emocionais da tortura. Por isso apelei para imagens fortes que arrancassem o leitor do seu conforto e o envolvesse com a recriação das emoções que pretendia apontar. As apoiando ou condenando, mas sem deixar a saída honrosa da indiferença. Daí a escatologia poética, que ao mesmo tempo exala o doce odor que antecede o cheiro forte e característico dos cadáveres em decomposição. Tentei uma mistura de Baudelaire e T.S. Eliot. Além disso, é um livro que por respeitar a importância do leitor e leitora para emergir do papel, não estabelece nenhum acordo. Não é feito para agradar nem para desagradar. É mais uma tentativa e uma esperança de expor a brutalidade dessa deusa tortura que tanto reverenciamos. E que quando reagimos em vez de superá-la e eliminá-la do nosso sistema, a recriamos em nossos pesadelos e traumas ao legitimar o ato de tortura como uma punição pelas culpas que não temos.

RETORNO – 1. Adquira este lançamento . 2. O livro está disponível para download em seu iPhone, iPad ou iPod touch com iBooks e em seu computador com iTunes. Os livros devem ser lidos em um dispositivo iOS.  2. O prefácio do livro, de minha autoria, está aqui.