Graciliano Ramos
“O capitão de nariz comprido esteve conosco dois ou três dias. Nunca
lhe ouvi uma palavra, mas vi-o falar em excesso a grupos pequenos,
afirmativo, açodado, a examinar os arredores com jeito de conspirador.
Sem revelar em público nenhuma opinião, estava sempre a sussurrar um
cacarejo indistinto, passeava na assistência minguada os inexpressivos
olhos de ave, erguia o bico longo,
baixava-o, reproduzia movimentos sacudidos de galinha a colher grãos. Os
cochichos permanentes aborreciam-me, os gestos ambíguos, o proceder
furtivo, o conluio visível de meia dúzia de pessoas. Afinal do tipo
sumiu. Na verdade estivera a sumir-se constantemente, a esgueirar-se de
um cubículo para outro. Findos esses manejos, bateu asas na fuga
definitiva, nem nos deu tempo de gravar-lhe o nome: para mim ficou sendo
o capitão de nariz comprido.”
Este parágrafo inicial do
capítulo 9 da Segunda Parte do Volume I de Memórias do Cárcere (pg.
253), ensina como o mestre formata um personagem, que neste trecho do
livro tem a função de sintetizar as dissenções internas dos presidiários
políticos. Este livro é a grande obra prima de Graciliano Ramos. É seu
Grande Sertões, Seu O tempo e o Vento, seu Guerra e Paz. O Brasil no
porão, explícito, cru, diverso, assustador. Um mural humano com detalhes
íntimos de cada figura, cada gesto, cada ação.
O livro o tempo todo é sobre o ofício do escritor. Uma Aula magna. A narração narrando a si mesma, o narrador tratando o protagonista, real, como personagem, e cada personagem como pessoa real. As folhas escritas fazendo parte da história. A postura, a concentração, a auto-crítica, o desespero, a dispersão, a memória. O texto fazendo parte da ação. Um assombro. Segue a leitura.