Nei Duclós
A predestinação define a vida de cada um. Quem nasce para o
crime, nele permanecerá e quem encarna a Justiça dela não se afasta. A oposição
entre o ladrão Jean Valjean (Hugh Jackman), que tenta a remissão, e o
comissário de polícia Javert (Russell Crowe) que não acredita na sua
recuperação, costura o musical Les Miserables (2012), história filmada pela enésima
vez e aqui transposta de um espetáculo da Broadway. O diretor Tom Hooper e os
roteiristas Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil montaram uma narrativa de 158
minutos aproveitando filmes anteriores,
que já tinham conseguido formatar para o cinema o catatau de Victor Hugo (1.372
pgs.), publicado em 1884. Todos conhecem a história, mas o que pega nesta
versão é a remissão e o pecado por meio do mergulho na consciência, mãe da
Justiça.
O debate por meio de monólogos cantados é um duelo entre a descoberta
do ladrão de que havia uma chance de se salvar, e a derrota do policial que não
consegue fazer da lei a palavra final sobre a natureza humana. O conflito é
pessoal, mas está vinculado miseravelmente à situação social. Assim como
Michelet inventou a revolução francesa 40 anos depois de ela ter ocorrido, uma
pesquisa feita em plena restauração monárquica, também Victor Hugo foi buscar
na revolta derrotada de Junho de 1832 o ambiente de confronto entre a liberdade
e opressão. Neste momento, ao contrário da Revolução vitoriosa de 1789, a
mocidade armada enfrenta os canhões nas barricadas, mas a população se recolhe
e todos devem morrer.
O que triunfa é o mito recorrente do povo que se liberta, ou
por meio do sonho ou pela luta que sangra como exemplo. Lugar comum de uma
literatura revolucionária, mas que no super espetáculo deste filme britânico
ganha contornos emocionantes, apesar de inúmeros equívocos. Um deles é insistir
sempre no diálogo cantado quando em várias passagens caberia tranquilamente a
fala normal, sem melodia, como acontece em West Side Story. Insistir em ser
tudo feito no gogó (ok, é uma ópera) força a situação a toda hora. Outro inconveniente
é a obviedade das letras, com rimas fáceis (o inglês que eu entendo não pode
ser bom). E há exageros de dramalhão especialmente quando Anne Hattaway (que
virou um fiapo neste filme, queriam matá-la?) lamenta a morte do amor quando
sofre a barbárie da prostituição.
Mas o filme se impõe, apesar de tudo. Confesso que quis
desistir no meio, mas foi bom seguir em frente, cruzar o umbral das várias
fases da História, em que o ladrão que se redime muda de identidade sempre e se
pergunta quem é ele, afinal de contas, só encontrando pouso na morte. Não há
lugar para a transformação humana neste mundo datado e definido como imutável.
O paraíso, a promessa e a chance inoculadas pela fé são as saídas para o sonho
que esbarra na traição, na calúnia, na brutalidade, na opressão, na tirania.
Quem é a indústria do espetáculo para falar nisso? Desconfiamos do filme over,
mas o que vale é o talento.
No geral implico com filmes de época, pois acredito que não
se fabricam mais biotipos que encarnem de verdade séculos anteriores. Fica tudo
parecendo um show de rock, inclusive com os cabelinhos e os esgoelamentos. A meninada se esforça mas não convence. Ficamos
com alguns protagonistas, como os dois principais, que tiram leite de pedra,
apesar do entorno fake. Cada vez temos
menos atores como Russel Crowe, com carisma suficiente para mostrar um vilão
contraditório com problemas de consciência. Mas ainda há.
O forte das músicas são as canções cantadas coletivamente. A
da prisão e da miséria e as revolucionárias. O resto parece feito a fórceps para
caberem na história. Implicâncias minhas, mas o filme vale. Confesso que fiquei
emocionado em muitos momentos e achei o trabalho todo admirável.
RETORNO - Imagem desta edição: Russel Crowe, soberbo como Javert.