5 de agosto de 2010

A HOLE IN THE HEAD: ALTAS ESPERANÇAS


Arnold Schulman era um cara pretensioso. Escreveu uma peça de seis horas intitulada “Meu violino tem três cordas” e quase morreu de vergonha quando ouviu na estréia um comentário debochado do lendário Noel Coward. Esse susto convenceu-o de que precisava se adaptar. Por isso reescreveu tudo e repassou para Arthur Penn fazer "The Heart's a Forgotten Hotel", um especial de TV. Um produtor viu e sugeriu que virasse peça. “Mas ela foi escrita para o teatro!”, disse.

Teve de passar uma madrugada refazendo a peça, que foi montada com sucesso. Mas as pessoas gargalhavam nas partes de comédia e odiavam as passagens de drama. Ele então precisou limpar a dor para deixar quase que só o riso. E teve também de mudar o título, considerado anti-comercial. Alguém veio com a idéia de A Hole in the head, Um buraco na cabeça, expressão ídiche para se referir a algo desnecessário. Onde colocar isso no texto? se perguntou. Mas foi o que fez, para justificar o título.

Essas concessões o amargaram demais. “Deixei de ser um artista para ser apenas um profissional”, disse. “De repente, com dois filhos na escola privada e os impostos, você acorda tendo de trabalhar num filme”. Mas Frank Capra (e mais tarde Coppola, que o arrastou para o projeto do magnífico Tucker) salvou-o, convidando-o para usar o material, reescrito novamente, claro. Se deram bem, depois de uma discussão em que o ardoroso Schulman ameaçou devolver o dinheiro se Capra insistisse numa idéia que ele, roteirista, considerava idiota.

“Naquele tempo as pessoas sabiam o que estavam fazendo”, lembra Schulman. “Cada um estava no seu lugar e havia respeito mútuo”. Mas o resultado do filme não o deixou satisfeito. Achou-o excessivamente melodramático. Sabia que pesara a mão na emotividade, mas achava que Capra iria cortar. Engano seu. O diretor colocava microfones nos cinemas onde fazia testes de público e gravava as reações da platéia. Descobria assim de que riam ou choravam e quanto tempo durava a manifestação. Profissional é pouco para dizer de todos esses americanos loucos.



Hoje, quando passa A Hole in The Head (que o Brasil teve a ousadia de traduzir para o horrendo Os Viúvos também sonham), as pessoas se emocionam e vem comentar com ele, que continua sem entender porque tanto sucesso. Nós sabemos porque. Primeiro, porque é um filme de Capra e seus heróis em busca do amadurecimento, que tarda pois sempre há algum evento que impede, como notou Harry Hargrave no seu livro Interview with Frank Capra, de 1976. Segundo, porque tem Frank Sinatra, ator carismático e dedicado, talento que sobra em tudo e que interpreta o papel do viúvo farrista e quebrado que vive com o filho pré-adolescente, interpretado por Eddie Hodges.

Terceiro, não menos importante, porque Sinatra contracena com o gênio de Edward G. Robinson, que faz de maneira ultra-competente o irmão mais velho, turrão, pão duro e ranzinza. Flagrado, pelo irmão perdedor, na sua pouca importância de vida, Robinson compõe uma complexidade que dá grande graça ao veterano e exímio ator. Os diálogos cortantes entre Frank e Edward são primorosos, podem ser comparados a jabs sucessivos numa briga de boxe, onde os intervalos são definidos pelas mulheres, também maravilhosas, interpretadas por Thelma Ritter (a cunhada) e Eleanor Parker (a viúva).

E, quarto, porque uma dupla de compositores, Jimmy Van Heusen (melodia) e Sammy Cahn (letra) criaram a canção High Hopes, vencedora do Oscar de 1959. A mesma dupla ganhou outro Oscar com All the Way, o clássico cantado por Frank Sinatra. No filme, High Hopes é segurada no gogó pelo garoto Hodges (nascido em 1947) e a Voz, ao ar livre, numa externa em Miami, onde acontece a história. “Não se preocupe com os erros ou afinação, disse Capra para o menino. Seja você mesmo". O resultado é absolutamente encantador.

Não bastasse isso, o filme oferece ainda coadjuvantes de primeira linha como Keenan Wynn no papel do crápula que subiu na vida e humilha o herói. A própria Thelma Ritter, a chorona cunhada que quer levar o sobrinho para Nova York. A ótima Carolyn Jones (a futura Morticia da Família Adams dos anos 60 na TV), surfista que só pensa em diversão, e o impagável Benny Rubin, figura constante em faroestes com seu jeitão típico e desleixado e que é uma simpatia só como o atendente do hotel falido.

Esse é o tipo de filme que eu via na adolescência em Uruguaiana e que revi ontem, quando senti a mesma emoção diante de uma história dirigida por um gênio que une magníficamente uma dupla de atores magistrais, um casal de viúvos maduros e sinceros, dois compositores que fizeram história, entre outras ligações indissolúveis. Cinema de pura magia, de artistas envolvidos numa indústria voltada para o público e que teve sua idade de ouro, quando o talento se sobressaía, apesar das dificuldades e das distorções.

A Hole in the head não é comédia, nem drama, nem teatro filmado. É uma obra para onde confluem as melhores cabeças, todas atravessadas pela graça e a força da vocação e do trabalho duro nesses ofícios inventados para que aprendêssemos a amar. É um filme que aposta alto na esperança: do cara que pretende dar um salto na vida, da mulher que sonha com uma família, do garoto que precisa continuar com o pai, dos parentes que desejam o melhor para o sonhador. Melhor pra nós, que podemos nos revigorar nesses sentimentos quando tudo parece perdido.

RETORNO - 1.Imagens desta edição: na foto principal, Siunatra e Edges interpretam High Hopes, a canção que venceu o Oscar. Na menor, Capra, Frank e Robinson: gênios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário