18 de agosto de 2010

A FACE IN THE CROWD, OBRA-PRIMA OCULTA: VIVA KAZAN!


Muita coisa influenciou para que caísse no esquecimento Um rosto na multidão (A face in the crowd), de 1957, mais uma obra-prima de Elia Kazan, com o mesmo roteirista de "Sindicato de Ladrões" (On the waterfront, 1954) Budd Schulberg. O fato de Kazan ter se enredado no macartismo, onde confirmou a existência de colegas comunistas para a comissão parlamentar que acabou destruindo a isenção em Hollywood, foi uma delas, pois a época do lançamento do filme coincide com seu depoimento para os nazistóides. Mas o principal motivo foi porque Kazan desmascarou a manipulação política, econômica e comportamental por meio da televisão de maneira contundente, numa obra soberba, daquelas de cair o queixo.

Pois se fosse uma denúncia correta embalada num trabalho medíocre, não haveria tanta determinação em soterrar o filme. Em todos os aspectos, Um rosto na multidão é uma obra-prima profética e perigosa para os poderes da mídia e da política. Se destaca pelo que diz e como apresenta, do claro escuro às planícies iluminadas e desérticas; das grandes cidades ao interior; das interpretações aos diálogos; dos personagens definitivos às cenas dramáticas pessoais e coletivas; do close ao plano geral; das referências às originalidades. Tudo numa narrativa épica, de grandes transformações, quando as pessoas mudam junto com o país e amadurecem na dor, como sempre acontece.

Tudo isso junto compõe um trabalho de mestre, com atores perfeitos como Walter Mathau no papel do intelectual formado em Princepton e que vira autor de sketches para programas de humor, Andy Grifith no impressionante Lonesome Rodes, o caipira convocado para o rádio que ganha a TV e o país; Pat Neal (que faleceu recentemente com 94 anos) como a sombra do ídolo; Lee Remick no primeiro papel da sua carreira como a baliza alpinista de 17 anos que casa com o ídolo; ou Tony Franciosa como o vilão marketeiro que se apossa da metade da fortuna do seu protegido.

Entre as profecias, ou pelo menos as tendências que se consolidaram com o tempo, está o Viagra (batizado de Viajet), uma aspirina energética recomendada para a performance sexual; a máquina automática do riso; o candidato presidencial vendido como produto de consumo para um público superficial e apressado; a obediência dos profissionais da mídia aos poderes ocultos da nação;o escritor que trai seus principios ao se engajar na televisão; a idealista que inventa um monstro; o general que quer dominar a nação entregue ao poder da televisão. Lonesome Rhodes é um caipira cantor folk descoberto numa prisão e que alcança fama no rádio, para depois migrar até os grandes contratos publicitários num programa de sucesso e se transforma num agente de marketing dos novos tempos. Ele acaba caindo em desgraça graças a um microfone providencialmente aberto ao vivo que revela seu verdadeiro perfil.

O papel é interpretado magistralmente por Andy Grifith que hoje, aos 84 anos, faz campanha a favor da política de saúde do presidente Obama. Ele fez uma carreira na televisão quase idêntica ao seu personagem radical, com a diferença que não influenciou ninguém nem alcançou alto índice de popularidade. Mas o que ele faz diante das câmaras, num overacting que, desconfio, inspirou Nicolas Cage em The Bad Liutenant, analisado aqui esta semana, é antológico. Igualmente Pat Neal encarna a mulher por trás da trama, a que vence na carreira e fracassa no amor e acaba desinventando o que ela própria criou e que fugiu ao controle de todos.

São inúmeras as referências de Kazan com a política da época, como o fato de o candidato presidencial ter obrigaroriamente um apelido, como Dick Nixon, e com as campanhas que entravam no jogo bruto da comunicação de massa, deixando de lado a postura tradicional do discurso para entrar no ramo do slogan, da logomarca, do jingle, das frases prontas servidas em pílulas que funcionariam como um alimento energético para as populações despossuídas. E a mais bela referência cinematográfica é o final idêntico ao de Shane, em que o ex-ídolo infantilizado clama pela sua protetora com a mesma fala do garoto que vê sumir no horizonte o pistoleiro herói.

Até hoje me pergunto se não pesaram demais a mão com Kazan, que jamais errou em seus inúmeros filmes, alguns deles antológicos, como, além do citado On the Waterfront, o América, América (um noir sobre os migrantes de fazer inveja a qualquer filme de transgressão hoje), The Arrangment, com Kirk Douglas e Faye Dunaway, aquele tipo de filme denúncia sobre a publicidade e as corporações que não se faz mais hoje, nesta era da vitória do macartismo, Viva Zapata!, com os eternos Marlon Brando e Anthony Quinn, entre muitos outros. A verdade é que ficam condenando Kazan e deixando frouxo os próprios nazistas que fizeram pesada e irreversível intervenção em Hollywood, onde os filmes de coragem foram minguando até termos hoje a plêiade de astros da CIA e do Pentágono, como Stalone, Schwazznegger, Kiefer Southerland, Tom Cruise, entre outros.

Quando recebeu um Oscar Honorário pouco antes de morrer os patetas do Sean Penn (que vive lambendo as botas do Chavez) e o Nick Nolte (que vive fazendo propaganda do militarismo americano em seus filmes) ficaram em postura indignada contra o “delator”. Não seria porque Kazan denuncia a fonte da corrupção em Hollywood e em Washington e que acabou engolfando tudo, impedindo que se fizesse novamente bons filmes? Não seria porque peitou a corrupção dos sindicatos no seu clássico "Sindicato dos Ladrões" (vai enfrentar a máfia sindical, vai)? Prefiro mil vezes um gênio e sua humanidade precária e escassa a ídolos de barro com muito menos talento. Pois Viva Kazan! e tenho dito.

RETORNO - Imagem desta edição: Andy e Pat, um romance impossível no turbilhão da mídia e da política.

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