24 de agosto de 2010

ESCURO MÁRMORE DE ESPUMAS


Nei Duclós

Quando todos se despedem, as corujas abrem o olho e voam em direção ao escuro formado pela massa de sonhos anônimos

Antes de dormir, as canções embalam pássaros que desistiram de esperar o amanhecer

Há um arrastar de asas no piso noturno, feito de mármore de espumas, que levantam esporos de flores ainda não despertas

Quando na curva do arroio desaguávamos no grande rio, de repente o céu mergulhava ao lado do barco, e depois emergia o rosto, rindo de nós

O amor não tinha vindo, mas desconfiávamos de algumas paragens, onde repousavam corpos imaginados e encantos sem sentido

Sonhávamos com terras distantes, sem desconfiar que ali era o reino remoto de uma cilada: o Tempo, semeador de sustos

De repente, um estrondo, no meio do rio. Adultos levantavam e iam até o peixe fisgado no espinhel. As crianças ficavam, de coração aos pulos

Barracas de lona cheirando forte, daquelas do Exército, nos defendiam do sereno pesado nas pescarias do inverno. Mas não da Lua, que entrava

Escutava pios na mata cerrada a dois passos de mim, enquanto olhava para o derramar de estrelas cadentes na noite fria do pampa

Lá nasceu a palavra, como sereia de água barrenta, como cardume de alevinos em sanga, como a Lua cheia, que carrega consigo o horizonte

Ainda estou lá, onde mora a sonho que arrastava passos na estranha madrugada

É o Brasil profundo, que nos criou, alimentou, formou e depois soltou para o mundo. O país hoje abandonado, que pulsa em nós, como um poema

O maior orgulho do meu pai era a tração nas quatro rodas do Candango, da indústria nacional. Atolava de propósito para escapar, triunfante

O barro subia até a cintura, os espinhos cravavam na sola dos pés para sempre. Voltávamos miseráveis para os braços da mãe penalizada

Havia cheiro de pólvora nos acampamentos, como se fôssemos parte de uma tropa aguardando o combate. Mas um riso coletivo desmoralizava tudo

Foi assim que passei a infância, no miolo do nada, na noite infinita, quando éramos rodeados pelo mistério e havia fantasmas fazendo ruído

A madrugada avançou carregada pelos versos que vão saindo daquela fonte. Dobro o papel no bolso e tomo o trem na estação das horas.


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Munch Museet

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