27 de agosto de 2010

CORAGEM VEM DO CORAÇÃO


Coraticum, origem da palavra coragem, tem coração, mente e alma na sua estrutura graças à raiz cor, do latim medieval. A fonte do significado, portanto, não é a macheza, ou a força bruta, mas o sentimento, a razão e a vontade. Pode ser exercida por qualquer gênero ou idade. Não se confina ao orgulho, à soberba, à postura hegemônica. Pode ser encontrada entre perdedores, como os japoneses na II Guerra, quando viram seu país pulverizado por duas bombas atômicas e invadido pelos soldados Aliados que prostituíam suas mulheres.

Muitos homens se enterraram no álcool, como mostram dois filmes japoneses separados por 42 anos, Anzukko (1958), de Mikio Naruse, e A Esposa de Villon (2009), de Kichitaro Negishi. São histórias tão idênticas que chega a ser difícil acreditar que foram baseados em obras de autores diferentes, ambos importantes e consagrados. Os textos que dão suporte aos filmes são uma novela de Murō Saisei, baseada na sua relação com a filha, no de 1958, e um conto de Osamu Dazai, autobiográfico, sobre sua vida no pós guerra, no de 2009. Ambos enfocam a coragem da mulher casada com escritor alcoólatra.

É óbvio que pelo menos um escreveu tendo conhecimento do trabalho do outro, já que as narrativas tem pontos em comum em demasia, o que vai além da sintonia. O que é estranho é não estar disponível informação a respeito, pelo menos no que consigo pesquisar na internet, já que não tenho biblioteca especializada em cinema ou literatura do Japão. Saisei teve vida longa e consagrada e sua narrativa coincide com o personagem do pai que mantém uma relação lúcida e responsável com a filha. Esta, aprovada pelo pai, casa com um jovem autor frustrado, que se enterra no saquê por pura inveja do sogro.

Dazai teve uma vida complicada e acabou morrendo com 41 anos. Foi bastante homenageado no seu centenário no ano passado, época em que foi lançado Villon´s Wife, o belo filme sobre a mulher que encontra trabalho e assim escapa do sufoco de sua vida com um escritor comercial que só pensa em suicídio. Mas insiste em continuar com o esposo, apesar de roubos e traições e mantém-se firme, dizendo que não importa se nos sentimos monstros, pois o importante é sobreviver. Não se trata de “submissão da mulher japonesa” como quiseram alguns resenhistas, ao contrário. É uma forma de auto-superação da mulher, no pré-feminismo. Não há dinheiro nesse Japão demolido e só o que resta é a coragem de não se deixar abater pelo medo, que carrega os homens para o fundo do copo.

Já Anzukko é a moça cortejada por muitos pretendentes que acaba se enredando em alguém parecido com o pai. Por estar próximo e ser também envolvido com livros, ele acaba ganhando a parada, o que provoca um profundo desespero em toda a família. O filme em preto e branco é muito colado às lições do Mestre Ozu, em que a rotina da família japonesa é mostrada em toda sua crueza nos diálogos e com a clássica simplicidade e objetividade das imagens. Mas há um ritmo seguro que leva o espectador ao mergulho naquela família pressionada pelos poucos recursos e que encontra a tragédia num casamento mal resolvido.

O celebrado Villon´s Wife tem mais riqueza visual, mas mantém quase os mesmos personagens: a mulher de coragem (neste caso, com o filho pequeno a tiracolo), o marido covarde, bêbado e cretino (mas com talento, ao contrário do jovem autor de Anzukko), o aspirante a escritor (nos dois filmes), o apoio dos mais velhos e o Japão às voltas com a miséria das esmolas repassadas pelo exército aliado em forma de alimentos como carne de baleia enlatada entre outras barbaridades.

Esses dois filmes apresentam não apenas coincidências, mas a colagem pura e simples de uma história na outra. Não vi nada a respeito na rede. Alguém sabe de mais alguma coisa? São ambos excelentes, sobre a coragem da mulher e como ela enfrenta a barra de um país derrotado, representado pelos homens que sobreviveram à guerra. Dedicam-se à salvação da família nascente, para que haja chance de sobrevivência no mundo hostil.

RETORNO - Imagens desta edição: a primeira é cena de "Villon´s Wife", com a estupenda Takako Matsu no papel de Sachi e Tadanobu Asano no de Otanie; a segunda, de "Anzukko", com Kyôko Kagawa no papel da própria e Sô Yamamura interpretando o pai.

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