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Nei Duclós
Uma pilha de livros, todos atirados, saindo do saco sujo de sangue, no piso da padaria, atrás daquele troço que mostra os doces e salgados...como é mesmo o nome? Não é balcão, é uma cristaleira enferrujada. O inspetor Murrinha não dominava as palavras, desconhecia seus significados, por isso vivia rodeado de objetos sem nome, que precisavam ser descritos para se fazer entender.
- Ok, Murrinha, entendemos, os livros estão num canto, escondidos e só tu viu. Agora continua o relato.
Não fosse gago, Murrinha passava uma lição de moral no Gordo, que sempre arrumava um jeito de acabar o seu prestígio. Não fosse gago e coxo, talvez pudesse comer a mulher do Gordo. Seria sua vingança.
- É imppppportante saber de onde eles caíram.Eles caíram de cima dessa cccccccristaleira enferrujada, compreendeu? E ficaram no canto, onde ninguém viu, só eu.
O Gordo olhou para o lado, onde estavam dois policiais, que participavam da investigação. Usava um palito pendurado na boca. Abriu as mãos em forma de leque, dizendo bem casual:
- Entendemos...
Murrinha sabia: seu argumento não pesava, sua descoberta agora era dele, Gordo, e praticamente estava fora do trabalho. Dera duro, tinha vindo na primeira hora, estava a postos quando notou algo estranho, o brilho néon de um papel duro. Só então viu que era a capa envernizada de um livro. E mais outro. Havia um tesouro exposto com suas luzinhas naquele cantinho. Eram livros de negócios, auto-ajuda, como é mesmo nome? Livros que te conduzem para a inteligência visceral, emocional, ou sei lá o quê. O que fazia aquela pilha de livros esquecidos no lugar onde houvera um assassinato?
- Suicídio, corrigiu o Gordo. A balconista se matou.
- Com dddddois golpes na cabeça? Vvvvvai ver o primeiro não pegou direito aí ela mmmmandou ver de novo. Tttttodo mundo tem direito a uma ssssegunda chance, não é Gggggordo?
O rotundo inspetor-chefe olha para o nada com seus olhos de sampacu. Murrinha não era o problema. O problema era a imprensa. Já estava se sobreaviso. Dali a pouco chegariam as barbies segurando microfones, loucas para dizer afinal, afinal, afinal.
- Afinal, foi morte natural, disse o Gordo no fim da entrevista.
Houve uma gritaria geral:
- Como morte natural?
- Quero dizer, é natural que tenha morrido, depois de perpetrar suicídio. E chega por hoje. Vão ver se caiu algum barraco na zona leste.
Psssst. Murrinha era péssimo com a mulheres, não acertava uma. Queria chamar a atenção da repórter, mas só sabia dizer psssst.
- O senhor está me chamando, quer falar comigo, tem a ver com o caso?
- Vvvvvamos tomar um café. Vem aqui. Mas sem o câmara, o motorista, o segurança e o microfone. Só tu, só tu.
A mulher ficou desconfiada. Assim mesmo obedeceu. Foi para o canto da padaria, atrás dos gestos de vem por aqui do estranho policial, que usava chapéu de feltro e capote até os pés.
- Oooooolha ali.
- Não estou vendo nada.
- Cccccomo não? Não vê o saco cheio de livros?
- Ah, é verdade, o que tem?
- Nnnnão acha estranho uma pilha de livros numa padaria onde houve um cccccrime?
- Não. Por quê?
- Tu é mesmo repórter policial?
- Não, eu cubro shopping. Mas me disseram para vir aqui.
- Como assim, ccccobre shopping?
- Sabe dia das mães, da criança, Natal, Ano Novo? Eu faço o link do shopping. Pergunto se vale a pena e eles respondem vale a pena. Também cubro clima. Pergunto se está frio e eles respondem está frio. Nada a ver com isso aqui.
E fez uma cara de nojo.
- Mas os livros devem significar aaaaalguma coisa, tu não acha?
- Ah, isso deve, mas não é minha área.
E se retirou. Murrinha ainda ficou olhando para ela, depois para o saco sujo de sangue. Tocou com o pé uma capa branca, brilhante, que tinha no título a palavra Você bem destacada.
Mas tu é burro, hem Murrinha. Em vez de investigar, quer colocar a imprensa nesse caso. Falava consigo mesmo, não atinava o que iria fazer dali em diante.
- Murrinha, quer carona? Vamnbora para a delegacia. Os protocolos te esperam. Quero um relatório disso aqui, rápido.
- Vvvvvai tomar no cu, Gordo.
- Como é?
- É o que eu fffffalei. Vai tomar no teu cu gordo.
Os dois comparsas do inspetor chefe fizeram gestos de que iriam cair em cima do abusado, mas o Gordo pediu calma. Olhou o desafeto de alto a baixo e lascou:
- Vê se some da vida policial, Murrinha. De hoje em diante você está por sua conta. Nem me aparece lá. Vais receber tudo pelo correio. Fica em casa vendo sessão da tarde. E ó, leva a pilha de livros. Quem sabe você acha uma pista.
- Vvvvvou levar mesmo. Aqui está a cccchave do mistério.
Todos riram. Sabiam que Murrinha lia romances policiais antigos e vivia enchendo o saco com aquela arenga.
- Vai cagar pedra, Murrrinha, gago, manco, imbecil. Vai procurar tua turma.
Murrinha ficou só na padaria, junto ao saco de livros. Com fúria, jogou toda a pilha no chão ainda ensangüentado.
Do fundo do saco, agarrado a um manual de neurolinguística, lá estava ela, a arma do crime: uma faca bem pontuda e afiada, dessas de cortar queijo.
Murrinha pegou um lenço, se abaixou e pegou o material. A faca estava com riscos de sangue, pois tinha sido raspada na capa do livro de neurolinguística. O assassino tinha confiado na polícia: bastava colocar a arma do crime num saco que ninguém iria suspeitar de nada.
- O fiadaputa deu duas cutiladas na cabeça da vítima, disse que a coitada se suicidou e todos acreditaram!
Foi quando Murrinha se virou e teve tempo de ver ainda a cara do dono da padaria, com um rictus no canto da boca, apontando uma arma para ele:
- O Gordo fez uma encomenda. Mandou te matar, te colocar no saco junto com os livros, te atirar no rio, que ele livra a minha barra.
Murrinha não podia escapar, era manco . Não tinha condições de gritar, era gago. E se revidasse e se desse bem, iriam acusá-lo dos dois crimes, o da balconista e o do patrão dela. Por isso suspirou e levou um tiro enquanto folheava um livro que encontrou no meio da pilha. Era uma brochura toda carcomida. Uma velha revista de casos policiais.
RETORNO - Imagem de hoje: o cara.
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