3 de outubro de 2006

O VOTO FRANKENSTEIN





Pedaços mortos de posições, unidos pela indiferença e a apatia, deram vida a um monstro a que chamam de democracia brasileira. Ao meu redor, a indignação das pessoas com a eleição dos inelegíveis. Como um sujeito sob suspeita recebe quase 200 mil votos? Como alguém que despreza a política ganha consagração nas urnas e diz que vai a Brasília chiquérrimo? O país elege inúmeros Cacarecos, o rinoceronte dos anos 50 que serviu para o protesto da massa enfurecida com a endêmica incapacidade de os políticos resolverem os problemas da nação. Se eles são eleitos, como vão parar de roubar? pergunta alguém, escandalizado. O voto Frankenstein viabiliza a tunga colocando no poder quem já deu mostras de que nada vai fazer de útil. Fantasmas ressuscitam e nos perguntamos: será que Collor vai liderar alguma CPI contra corrupção no Senado? Neste segundo turno, há ainda a opção dos derrotados. HH diz que permanece neutra, mas Cristóvão Buarque coloca nas mãos do partido a decisão de apoiar um ou outro. Abstenha-se, Buarque, ou colocarás de novo o trabalhismo no colo do petismo? Não será de estranhar, já que Buarque é um enclave petista no trabalhismo.

CUSACK - Vejo filme que também se chama A Sangue Frio (The Ice Harvest, 2005, de Harold Ramis), com o excelente John Cusack, um ator que sabe o que faz. Parece que sua empatia é natural de tão eficiente (é um trabalhão expressar naturalidade). Cusack nos deslumbra com uma sucessão de filmes, com destaque para Alta Fidelidade, que também revelou Black Jack e sua gana de ator roubador de cenas. Em The Ice Harvest, Cusack é advogado da máfia que desvia uma nota preta do chefão. A história se passa numa noite gelada de Natal. O foco é na frieza da paisagem e dos personagens. Ninguém está nem aí para qualquer coisa, apenas para o dinheiro e o sexo. A violência implode nas relações tormentosas nas famílias, amizades e parcerias. Os diálogos são cortantes e revelam pessoas sem nenhum escrúpulo, um retrato do mundo voltado para o Nada. O sangue cobre as paredes só no final e de maneira intensa, mas não ocupa o espaço excessivo que existe, por exemplo, num Tarantino. Os americanos fazem apenas cinema, mas gosto de ler o que eles talvez nem intencionam dizer. A idéia original é criar uma obra tensa, hilária às vezes, violenta sem dar bandeira, mas o resultado é político: a cidade está sitiada pelos seus erros e as pessoas se destroem tentando escapar.

DIVISÃO - A frieza e a indiferença são nossos principais inimigos. Perdeu-se o tom épico da existência, esvaziado pelas lutas que redundaram num grande embrulho. Os heróis foram desmascarados e o anonimato e a desimportância pontificam como modelos de comportamento. Se você tentar resgatar a grandeza de viver num mundo em conflito, será ridicularizado. Ninguém se importa. Ainda mais agora, nesta primavera chuvosa, em que tudo vira barro. Há crueldade no egoísmo guindado ao poder absoluto de uma sociedade monstruosa. Não foi esse o mundo que imaginava viver. Mas temos que nos adaptar, diz a razão, nos reduzir em nossas ambições humanistas, virar alguma coisa apodrecendo no freezer. O Brasil foi dividido em dois nestas eleições. Uma parte acredita que o atual governo merece apoio, a outra quer se ver livre dele. Mas não há escapatória. Vença quem vencer, teremos que enfrentar a criatura inventada por este país sem rumo. Ela ataca e devora gente. Tem a voz gutural do horror. Atordoa com o barulho intermitente. E nem possui aquele charme do Frankestein original, em que havia esperança de que se humanizasse.

SAÍDA - Nem tudo está perdido, se ainda temos a poesia. Nem tudo vira pó se temos a palavra. Nem tudo nos aterroriza quando lutamos para sobreviver e há dignidade todos os dias. Precisamos apenas desconstruir esse bocejo, romper esse cerco e encontrar a saída na tempestade de neve. Do pessimismo à utopia, trafegamos como nosso corpo endurecido pelo tempo sem misericórdia.

RETORNO - Imagem de hoje: Billy Bob Thornton (Vic Cavanaugh) e John Cusack (Charlie Arglist) em "A Sangue Frio".

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