18 de outubro de 2006

GESTOS NA PAISAGEM





É possível que o sujeito esteja apenas checando as horas que dispõe, com os ponteiros do relógio do terminal. Mas a maneira como faz isso é que chama a atenção. Ele torce o braço, que imita movimento de cobra, com a mão virando uma espécie de cabeça crispada e dura que só falta vibrar a língua como cascavel. Arqueia e levanta o conjunto todo, do antebraço aos dedos. Seu objetivo é deixar o pulso, agora à meia altura, à mercê de uma consulta que irá fazer quando bem entender. Pois parece que ele fez aquele gesto para ver as horas, mas isso pode esperar. No momento ele está de perfil para a paisagem, olhando fixo e fundamente para algum ponto em frente. A barba grisalha, o cenho carregado, a absoluta seriedade de quem está plantando no mundo como um baobá, faz de sua efígie a imitação do Imperador Augusto, de Roma.

Ele fica assim com seu pulso à disposição, aguardando uma decisão, por um tempo que parece infinito. Depois, lentamente, volve a cabeça e o olhar para o relógio, quando então verifica as horas, como se estivesse auditando o andar do Tempo. Fica fuzilando o registro dos segundos, agora todo curvado sobre seu objetivo. Depois esquece o braço, que cai aos poucos, inerte, para junto do seu corpo. É assim que agem as pessoas que habitam a terra. Tudo são ordens e meticulosa peformance, para que a paisagem obedeça aos seus ditames. Isso acontece porque somos um país de escravos, em que todos procuram demonstrar que são donos do mundo.

MAJESTADE - Na praia, as pessoas caminham crispadas pelo design de um corpo acostumado a se apropriar de tudo ao redor. O cara que no escritório, no trânsito, em casa, é o manda-chuva, acha que os objetos, pessoas, edifícios, tudo fique existe em função do seu andar e suas vontade. Então ele coloca a roupa de caminhar acompanhado dos badulaques como celular e outras coisas e anda como se estivesse ordenando o mundo. Mas o vasto céu, o mar sem fim, a areia, impedem que a mágica funcione. Então eles marcham, meio deslocados, um tanto decepcionados que a praia não se curve diante da sua majestade. Isso acontece na maior parte do espaço palmilhado.

Mas há um momento em que ele passa por alguém, que está também caminhando ou sentado diante das ondas, e então acontece. Ele se apruma e lança aquele olhar excludente, para colocar o outro no seu lugar. Por alguns segundos, a coisa faz sentido. Então, satisfeito, continua a caminhada, varando a paisagem como um aríete, enquanto o litoral continua na mesma, indiferente a tanto esforço da barbárie excludente.

CONFRONTO - A mulher passa pela catraca do ônibus fazendo cara de nojo. Ela franze a testa, e torna evidente que sua boca expressa desprezo pelo ambiente. Depois suspira, infeliz por estar ali, no meio do pobrerio. Veste-se de maneira modesta, é o rosto que faz dela uma aristocrata. Entre os homens, é o exercício impune da testosterona explícita. Arqueiam as pernas e os braços e avançam sobre os outros, já que todos são invisíveis. O convívioo humano coletivo no Brasil, não mais pontuado mais pela gentileza, é terra de ninguém. Há ilhas de conforto. Um adolescente que oferece o lugar, uma conversa rápida com a mãe preocupada com a carreira e os filhos. Mas são raridades. O que mais temos é o confronto físico de pessoas atiradas no transporte público sucateado, nas ruas tomadas por camelôs, no barulho infernal de sons nas lojas e automóveis. Somos, como dizia Borges da Argentina na época da guerra das Malvinas, um país de atordoados. E nossos gestos de profunda exclusão demonstram que temos medo e apenas medo.

RETORNO - Foto magnífica de Ruud Van Empel publicada pela revista Sagarana: o humano integrado na paisagem.

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