Nei Duclós
A única coisa real de uma obra de ficção é a linguagem usada
para inventá-la. Não adianta fazer turismo por lugares descritos em romances,
os lugares estão nos livros. Macondo fica nas páginas de Cem Anos de Solidão,
mas pode ser Budapeste, Londres ou Toscana.
A esta altura do campeonato, em que a transparência é total
em todas as mídias, os velhos truques de ilusionismo não funcionam mais na
literatura e nos roteiros e é preciso enxergar o espelho que reflete a imagem,
a luz que projeta o filme ou seleciona a ação num palco, a fala que define o
lugar . Isso é o que importa, não os conteúdos, mas a mão que leva a até eles,
os recursos do estilo, da sonoridade das palavras, as formas e volumes da
composição visual.
Como são os romanos para Hollywood? São os caras que usam
franjas caindo na testa, como notou Roland Barthes. Isso serve tanto para a
época de Marlon Brando (Julio César) quanto a de George Cloney (Ave César). O
detalhe visual vale por um perfil da coletividade em tempos remotos.
Na serie Flaked, de 2016 e disponível na Netflix, não
importa se a história é sobre sujeitos sem grana perambulando por Venice,
bairro rico de Los Angeles, seu casos, manias e brigas. Mas a coerência do
roteiro ao definir a ação de cada personagem, tecendo a armadilha de quem finge
mudar num mundo em transformação, mas se mantém intacto no passado.
Para isso as pessoas ao redor são envolvidas em redes de
mentiras e meias verdades, que é o sentido mais ou menos da palavra que dá
título à série, criada pelo ator e comediante canadense Will Arnett, que
interpreta o boa vida Chip e suas manhas
para se manter à tona depois de dez anos amargando um erro do passado
(atropelou fatalmente uma pessoa) e Mark Chappell . Nos destaques também estão
David Sullivan, no papel de Dennis, o melhor amigo que acorda para o egoísmo do
parceiro, e Ruth Kearney, como London, pivô do desentendimento entre os dois
marmanjos que vivem juntos.
A perfeita carpintaria coloca em cena o ciclista
ex-alcóolatra proibido de dirigir depois do acidente, seu amigo Cooler, além de
Jerry, o ex-sogro e também senhorio na loja onde vende banquetes com design,
ambos drogados, a ex-esposa milionária Tilly, a namorada Kara, o novo amigo
Topher, rico emergente dono de start up, a mãezona de Dennis, que é
ninfomaníaca, como se dizia antigamente,
etc.
O que parece casual revela-se consistente, com o deboche
permanente da cultura fake das redes sociais, as frases feitas desvirtuadas por
diálogos afiados e a falsa indecisão da história, que se desenvolve de maneira
firme apesar das aparências descosturadas.
Tudo acaba conquistando nossa atenção e emoção. Não cheguei
ao final, mas estou achando ótimo.
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