5 de agosto de 2012

THE LADY: BIRMÂNIA PARA BOI DORMIR


Nei Duclós

Birmânia era uma Shangri-lá cheia de belezas e riquezas onde o povo vivia feliz, mas aí vieram os malvados e a destruíram. O fato de o país ter virado colônia britânica no século 19 nem  vem o caso. A malvadeza é toda atribuída à raça malaia, mulata, ditadora e truculenta, que tiraniza seus próprios iguais e persegue a sofredora dona de casa birmanesa filha de general líder da independência que tinha sido assassinado. Por sua linhagem, serve de imã para o movimento democrático que se arrastou por décadas sem impedir que os generais da atual Mianmar dominassem o tempo todo.

A Orquídea de Aço abandonou família para abraçar esse sonho que lhe caiu no colo depois de uma vida pacata no exílio. Guindada ao primeiro plano diante das massas, envolveu-se na luta e nunca mais saiu dela. Ficou afastada dos filhos e do marido, que conseguiu colocá-la como candidata vencedora do Nobel da Paz em 1991. A comunidade internacional nunca pressionou de fato a ditadura da Birmânia, tanto é que ela se eternizou. Mas posa de politicamente correta no filme The Lady – Além da Liberdade (2011), do mentiroso Luc Besson, um cineasta de ação/ficção que omitiu o principal na sua hagiografia, como bem definiu a crítica: a de que a origem do mal da Birmânia veio do Ocidente, que não pode posar portanto de vestal do processo.

Enquanto a tirania é parda, a civilização do Nobel e da música é branca. A Lady faz parte da elite birmanesa e casou com professor de Oxford (que morre de câncer depois de anos de sofrimento com a prisão domiciliar da esposa que virou líder).  O eurocentrismo bizarro que pontua o filme é um escândalo ideológico. Separa o mundo entre os bons, de pele branca e seus coadjuvantes nativos orientais, e os maus, a pele escura ou de marfim cercando olhos puxados frios.

Não escapa de seu painel de horrores cenas de tortura apelativas para reforçar essa divisão clássica e bem fornida do mundo em convulsão, mas sob a liderança das potências bem intencionadas. Dentro da rigidez do enfoque, o general presidente é um místico (avesso à razão, portanto) e os traficantes uns monstros assassinos (e não soldados, como acontece no ocidente).

Se existe um povo criminoso é o formado pelas nações européias. Saquearam o mundo, transformando-o na joça que está. Mas como a brutalidade é muito explícita, então eles dançam o minueto da alegoria bem comportada, quando sabemos que podem destruir o mundo tantas vezes quanto lhes der na gana. É como se tivéssemos de admirar o carcereiro só para nos manter vivos.

O que mais irrita neste filme indecente é o abuso de jargões cinematográficos. Dez mil vezes a família se abraça. Uma cena de greve de fome repete sempre a comida intocada e o gesto desolado de quem vai servir. A boa atriz Michelle Yeoh (no papel da Lady Aung San Suu Kyi), de O Tigre e O Dragão, se desmancha em caras e bocas em cenas de canastronice aguda. O ator David Thewlis, que faz o papel do esposo Michael Aris então é um assombro de gestos repetidos metidos a significativos, de acenos com a cabeça.  A embaixada britânica (logo quem) é um nicho de resistência e civilização. Tenham paciência. E a toda hora alguém está lendo um livro sobre Ghandi. São de uma obviedade sem fim essas soluções cinematográficas, típica de cineasta sem recursos de criatividade.

Mas você não é a favor da luta do povo da Birmânia pela Independência e nega o papel de Suu?  Viva e democracia, abaixo a tirania e viva a luta dos povos contra a opressão. Não pode é achar que os britânicos são bonzinhos a ponto de lavar a culpa do passado comportando-se com tanta decência no episódio Suu, que no fim viu sua família ser destruída, o marido morto e a democracia adiada até o osso. Houve enfim abertura política e ela se elegeu deputada. Quando foi eleita primeira ministra no século 20, deixou-se apanhar. Deveria emigrar para Londres e de lá pressionar a ditadura. Apesar dos esforços do filme para tratá-la como impecável, ela aparece como a ingênua que caiu numa armadilha.

Aung San Suu Kyi .Mulher de valor e coragem, mas que não mereceu um filme à altura da sua sofrida biografia. Criado por um mito narrado pelo pai, o da civilização perfeita perdida , que tenta em vão resgatar. Uma fábula trabalhada para emocionar a adesão absoluta ao eurocentrismo.


RETORNO -  Imagem desta edição: Luc Besson orienta mal a estrela Michelle Yeoh.