19 de agosto de 2012

EXPEDIÇÃO NO ABISMO


Nei Duclós

Agora chega de poses românticas Diga a que veio, expedição no abismo.

Feita de vidro, como os perfumes, te pus nos ombros com teus suspiros. Tenho bronze, carinho.

Mistura de amor e neblina, tempestade de areia. Grãos e gotas formam tua fantasia de miçangas que imitam poeira.

Só digo se for sincero, só falo se vale a pena, só amo se houver perigo de decretar teu dilúvio na porção do paraíso.

Viajaste pelo mundo pelo gosto de partir, mas eu fantasiei que me buscavas. Por isso te recebo em cada aeroporto disfarçado de guia. Te levo para ver pirâmides, odalisca.

Não precisas de nada por ser linda. Disfarças com teu choro fingido de fada. Caio com gosto, patinho n´água.

O que mata é tua atenção distraída em direção oposta ao que me deslumbra. Nunca deixarás de ser esse choque de liquens.

A peça mínima marca o nível da beleza no perfil da tua postura. Acima disso é estado de alerta.

Gostas quando falo em público. Quando me aproximo para o sussurro, insistes em falar mais alto do que as buzinas. Qual é a tua, capricho?

Faça um teste. Pense em me dizer adeus, por exemplo. Depois se afaste alguns milimetros. Quero ver se aguento.

Cruzaste a ponte rígida que estendi em tua direção. Demoraste não para me assustar, mas porque desmaiavas sem resistência no meio da travessia.

Jamais duvide quando digo que és minha. Mesmo que eu tenha partido para os confins. Fui em busca do que é mais íntimo para dividir contigo.

Vire este rosto para quem te quis desde o primeiro minuto. Amor à primeira vista

Virás me ver, flor do fim do inverno? Estarei exausto, mas direi algo que te devasse inteira.

Estavas sozinha contando pedrinhas enquanto o lago ria de ti. Vim do fundo e te trouxe junto, pertinha

Voltei e te vi conversando como se nada tivesse acontecido. Não atentas para o molho perdido que ladra em teu caminho.


INTENÇÕES

Se eu repetir um verso, é porque te quero. Lembre disso

Não sabes minhas intenções. Adianto: são as piores. Vamos para o próximo capítulo.

Deixei um recado em tua cama. Ele se mexeu, mas não acordaste. Quando o sol estiver alto, ele vai virar um pássaro e voar para longe.

O que conta é o dia seguinte, quando te arrumas para ir-se definitivamente.

Quis te impressionar com a sabedoria, mas lês nas entrelinhas, desvãos do saber que tenho e nem desconfio.

Quando desconfiam do que dizes, esclareça que é aquilo mesmo que a pessoa entendeu. Queima etapas e economiza tempo.

Perdemos tempo distraídos com diferenças. Mas o que pega são as sintonias, espinha dorsal do convívio múltiplo, prazer da nossa inteligência.

Estás acostumada aos meus exageros. És abrigo do meu vento, barca prudente. Guardas meu impulso em teu seio

Te cantei em francês para ver se melhorava a melodia. Acho que deu certo, vestida de flores.


NATUREZA

Era a ponta de uma nuvem superoposta a outra, que refletia o último raio rosa do crepúsculo. Depois sumiu no cinza.

As nuvens se debruçam sobre nós. Levam o céu oculto nas costas. Prendem as estrelas. E aproveitam o crepúsculo para sugerir coisas

A natureza é sempre solene. Aprendemos com quem a mesquinharia?

Hoje só tem natureza? disse ela, trêmula, com crise de abstinência. É só uma chuva passageira, disse. Penso em ti, molho de beijos.

Minha mensagem estacionou por dias sem que viesses fazer a vistoria. Dormi ao volante e fui acordado pelo barulho dos pássaros que te anunciam.

São só imagens, você disse, deslumbrando a tarde com seu rosto de milagres.


RETORNO – Imagem desta edição:  cena de The passionate friends, 1949, de David Lean .