31 de julho de 2012

PAIXÃO


Nei Duclós

Milhagem de eterna viagem
seguida por servos e aias
palavra final sobre a fábula
tropeças em mim de passagem

Negaste o olhar, criminosa
pose de escuros óculos
sou o vulto que te observa
repouso de mundo remoto

finges, mas não me importa
guardo o que te incomoda
lembrança de tarde morta

Roupa antes do orgasmo
pele que o tempo molha
paixão, uma antiga história


RETORNO -  Imagem desta edição: Audrey Hepburn


SABEDORIA


Nei Duclós


Sabedoria é o que a vida ensina quando aprendemos na sua leitura

Preciso de óculos para achar os óculos, assim como, para te encontrar, do amor que ainda não existe.

Pele de seda, roçar de pétala. Navego em tua direção, estrela.

Ninguém está vendo teu rosto rútilo de gana na direção do alvo. Só a humanidade inteira.

Escute os tambores que ressoam no chão. São meus passos em tua busca, fugitiva.

Voltaste atrás porque não fechei o cerco. Te deixei solta, de coração na mão. Deu certo.

Não fomos feitos um para o outro. Algo não encaixa. Vai ver é o espinho da palavra. Vamos fazer silêncio para que o beijo assuma.

Arrependida sem amargura. És um encanto de equilibrista.

Tarde demais, deixaste pista. Não pense que não notei. Me pagas.

Passaste lotada. Eu estava à espera uma eternidade. Na próxima viagem terei mais sorte. Já fiz a barricada.

Temos nossa própria linguagem. O olhar é o abecedário.

Passou da hora. Melhor ficar comigo. A estrada ficou intransitável. Contratei as nuvens junto com a friagem.

Ficaste sem fala naquele encontro improvisado. Foi quando decidi a parada sem perguntar nada. Sorte que teu corpo me respondeu de maneira clara.

Brigamos por hábito. É como beijo de boa noite. Quem nos suporta?

Não digo de novo. Puxo a palavra do poço e ela é bebida até o fundo.

Esqueço os momentos. Só lembro quando o amor deixa marca.

Não entendo rupturas. Estudo o assunto colecionando encontros que de repente se esfumam

Dez colchões em cima de uma folha seca não impediram a insônia da princesa, que ficou com as costas marcadas. Mas a visita do bruto não fez estrago.

Não sinto saudade. Queria apenas um pouco de nós sobrevoando o tempo e chegando agora de uma longa viagem.

Não faça rescaldo. Dê espaço depois do incêndio. Não queime a lembrança da Lua pegando fogo.

Lembrei de ti, portento. De quando estávamos juntos. Agora fazemos parte do inverno, desperdiçando as cores que cultivamos.

Me emociona tua beleza excessiva,a que vem de dentro de ti e explode na minha frente. Úmida.

Espalhei os versos que fiz para ti, musa indiferente. As flores abertas ficaram contentes

Ficaste imóvel na arena do encontro. Nada conflui para lá, mesmo com vento. Há frio interno em cada movimento. Quando renascerá a boa nova do teu calor glorioso?

A Terra gira ao redor da Lua. Sua fase Cheia ilumina o lado escuro e a Nova brilha nas areias cinzas.

Tuas imagens são minha viagem. Cada uma traz um pouco de ti. Sonho com cada detalhe. Depois finjo esquecer para relembrar tudo outra vez.

Me aceite, não fuja. Posso ser o que te falta nos dias sem sentido.

Vibre, solidão, em direção às nuvens. Chegou tua hora de partir. Me deixe com o amor que demorou tanto.

Brinco pensando em ti, vida que nunca tive. Sentes quando respiro em tua direção?

Onde permaneço? Na palavra. É onde vive meu endereço.

Demonstrar um milímetro de fragilidade atrai a soberba do aconselhamento.

Acordas com minha respíração em teu pescoço. Bem que estavas sonhando com um sopro morno vindo de um jardim.


RETORNO – Imagem desta edição:  Bridget Fonda .

30 de julho de 2012

REDEMOINHO


Nei Duclós

Busco nas anotações os versos
inspirados em tua roda de sonho,
que girava em mim como redemoinho,
ancestral desses tornados tremendos,
e que tinham a inocência de pequenos
deslocamentos de folhas.

Como foi que um pé de vento
virou calamidade?
Só o teu vestido levantava
naquele rodopio travesso
Mas agora massas de ar frio e quente
deslocam cidades inteiras

É talvez sinal dos tempos
o encanto de tua dança entre sopros
sem nenhuma força
ter sido substituído
pela destruição dos campos
por giroscópios gigantes

Mas não temos medo, sou ainda
teu cativo na espiral de esperanças
e continuas manobrando
meu coração sem repouso
E gosto da tempestade que surge
quando enfim me alcanças


RETORNO – Imagem desta edição: Helen Hunt.

ONÍVORO


Nei Duclós

Na poesia sou onívoro, berço e ruptura.
Prefiro o soneto ao trocadilho,
o molho à secura.
Palavra soberana sobre a sílaba.
E as vogais, rainhas.
Harmônicos signos sobre a fala bruta.

Já fui bom nisso, quando não escrevia.
Agora tateio o breu do acervo sem fundo.
Sou como os trabalhadores das minas:
fico na gruta toda vida
e só venho à tona
se houver inundação e vontade na busca.

Valha-nos, ofício sem sentido.
Sente conosco em frente à eternidade.


RETORNO - Imagem: Kate Moss fotografada por David Bailey.

CELOFANE


Nei Duclós

Deus ressuscitou na minha terra
foi me devolver os dias serenos
aqueles em que só eu lembro
quando o inverno dava um tempo

veio brincar de futebol no terreno
sair aos bandos para ir ao cinema
desfilar sério no sete de setembro
dividir no quiosque um refrigerante

Não veio apenas devolver a infância
embrulhada em celofane de presente
mas o futuro que existia ainda intacto

Veio junto a moças e companheiros
no alarido bonito na saída do colégio
e Deus, feliz da vida, vinha na frente


RETORNO – Imagem desta edição:  eu aos 11 anos, com a camiseta do Colégio Santana.

29 de julho de 2012

GANA


Nei Duclós

Moldas o barro. Teu corpo é o instrumento
Os pés são o motor, produzem movimento
da massa que manobras, de olho salivante
imaginando o resultado cada vez mais forte

Penso em outra coisa enquanto manipulas
e tua atenção se enreda nos suspiros
Navego a paisagem, nua mas vibrante
um quarto qualquer, fuga do batente

Fazes acontecer enquanto tiro a trava
e vou acontecendo graças ao trejeito
sabes como ninguém reanimar desejos

Quando enfim acabas, o jarro fica pronto
mas queres repetir o que parece arte
e não passa da gana que jogas por esporte


RETORNO – Imagem desta edição: Rita Hayworth.