29 de novembro de 2006



O GÊNIO EM PLENA FORMA

Nei Duclós


Fiquei me perguntando porque A Filha de Ryan, de David Lean, incomoda, já que não fez sucesso e foi malhado ou ignorado pela crítica, na época (1970; depois cai a ficha e todos se arrependem, mas aí o estrago está feito). Carreguei meus arquivos cinematográficos. Robert Mitchum fazia parte de uma linhagem de "mocinhos", ou seja, heróis dos filmes de Hollywood. Na guerra (The Longest Day), no faroeste, nos filmes de amor. Com algumas exceções, como seu inesquecível papel num filme dark em que ele fazia o papel de um assassino. Mas Mitchum encarnava esse protótipo que rege os filmes. Há sempre um herói incontestável. Vê-lo como um professor sem expressão, no litoral perdido da Irlanda, casado com mulher muito mais jovem que pensa em outra coisa, vê-lo abaixar a crista pra a violência, apesar de tentar (para defender a própria honra) enfrentar a turba, é forte demais para o espectador e a crítica acostumados a clichês.


CORAGEM - Lean subverteu tudo. A protagonista é mulher, não o "mocinho". A mulher não é heroína tradicional, fundada na pseudovirtude, mas na imaginação e na coragem. O filme rompe com várias idéias fixas e atormenta o espectador com aquela paixão súbita, entre pessoas em lugares opostos. Há algo de tragédia shakespeareana nisso, pois o Romeu inglês conquista a Julieta irlandesa, provocando a ira da massa. Não há espaço para o amor em tempo de guerra, mas ele assim mesmo se manifesta, e pelo avesso, quando a repressão é muita. No fim, Sarah Miles está só com seu destino. Não pertence ao lado que a violentou ao condená-la, nem ao que a violentou ao possuí-la . Eis o momento em que se manifesta o humano, longe de toda a regra social. A Filha de Ryan é um filme perturbador porque vê poesia onde há profunda transgressão e denuncia a pressão sobre o indivíduo (o professor amarrado, o soldado louco, o palhaço demente, homens e mulheres em fúria). É sobre o indivíduo, mais do que sobre o gênero. No fundo, todos são vítimas (da opressão, da ignorância, da guerra), mas só a protagonista assume toda a carga.

CENA - Minha cena favorita é quando a filha de Ryan está esperando o ônibus para partir, ao lado de John Mills. É quando o chapéu voa para o alto. Sara Miles faz aquela expressão de espanto e abandono. É apenas um segundo, mas inesquecível. É o que mais me marca na memória desse maravilhoso filme. Sem chapéu, fica visível a violência que sofreu quando lhe cortaram o cabelo. É seu momento de fuga, despedida, de uma comunidade hostil. O vento a decifra, a torna transparente. É ela inteira que assoma naquele momento. É com isso que ela conta agora. Só, ao lado da Inocência (o louco manco e feio ao seu redor), ela expõe a culpa de quem a violentou. Sua solidão é seu trunfo. Sua individualidade quebrada, mas digna. É de fazer chorar as pedras.

VIOLÊNCIA - O professor é a Tolerância. Robert Mitchum, esse ator de primeira linha, navega no filme com seu andar único. Se diferencia do resto, aldeões brutalizadois pelo trato com a paisagem (a árdua sobrevivência em meio à fúria do mar). O professor é a compreensão gerada pela cultura, ao contrário da espontaneidade da vida comunitária confinada em ambiente hostil. Mas ele também faz parte da opressão, mesmo se diferenciando dela. Sua Tolerância tem também esse lado de convívio com a violência. Seu andar compassivo, seu rosto impassível, seu silêncio significam degredo para a esposa, que procura uma saída, uma janela, na aventura amorosa. A farda é a ruptura da Mesmice, o conflito e o arrebatamento. Contra esse envolvimento, a comunidade se joga contra ela a partir do sinal dado pela Inocência contaminada pela Frustração (o louco que sabe que nunca a terá, por isso a entrega de bandeja para os carrascos). A denúncia não é feita com palavras, pois o delator é mudo. Mas por meio de uma caricatura: a imitação do gesto e da roupa do militar, nesse momento citado por você, em que o Grotesco assume a feição do Horror.

PLANOS - Mesmo sendo um filme épico na paisagem, em que o Plano Geral parece ser hegemônico na narrativa, ele se define em Primeiro Plano, transformando-se numa contraposição de rostos transfigurados pelo drama: a cara do idiota, a expressão do professor, o susto da mulher e as faces crispadas dos opressores. No fundo, o mundo exterior, a Paisagem em movimento permanente, expressa o terremoto interno das personagens. David Lean, o Gênio em plena forma.

RETORNO - Os posts de hoje estava misturados. O texto acima é a união de minhas intervenções sobre o filme que publiquei no Orkut, na comunidade recém criada sobre o tema. Decidi publicar à parte.

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