20 de novembro de 2006




MERECER, O VERBO DA MODA

Eu mereço, você merece, nós merecemos, eles merecem. Merecer, o verbo da moda, era usado apenas como ironia, hoje é levado a sério. Há muita complicação, que deixa as pessoas estressadas, então elas se compensam, portanto, merecem. No fundo é o velho apelo psicológico de consumo. Você perdeu alguma coisa na vida diária (tempo, dinheiro, suor, emprego), então merece algo que o livre desse desconforto, que o aliene do que está se passando. Quer dizer também algo mais profundo. Você não merece ficar preocupado com os outros, só consigo mesmo.

O sacana fez de tudo para conseguir aquela grana, então ele merece tudo o quem tem. É o recado do egoísmo guindado a status social de primeira classe. Serve também para justificar erros: políticos e povo se merecem, por exemplo. O povinho é tão ruim que merece o congresso que elegeu. Isso tira a responsabilidade da máquina de corrupção e de marketing que serve para reentronizar o Mesmo a cada eleição. Fica tudo por conta do Zé Ninguém.

Merecer é o álibi perfeito para fazer tudo errado e ganhar com isso. Mas eu mereço! é o brado retumbante. Merece nada. Merece uma boa tronfa por trás. Não merecemos coisa nenhuma. Lutamos como loucos porque essa é a vida que nos deram para viver sobre a terra. Nascemos do sacrifício de outras pessoas, nossos pais, a quem jamais demos a verdadeira importância quando devíamos. Hoje fantasiamos sobre isso, mas a verdade é que família é um sufoco até percebermos que o sufoco faz parte da vida.

Você não merece fazer o que bem entende, tem que prestar contas. Nem viajar assim no más sem dar satisfações. Nem usufruir de tudo o que acha magnífico só porque está escrito em algum lugar (anúncio, de preferência). Você merece é o rombo que fez achando que merecia alguma coisa. Agora merece ser fuzilado ao amanhecer porque uma coisa é a vida sem a presença da morte e a outra é a realidade, quando acordamos para a presença de Deus.

O que aconteceu com a linguagem? Foi substituída por um robô, que obedece ordens superiores. A meritocracia, sonho da época em que havia educação de qualidade no Brasil, foi jogada rampa abaixo pelos que jamais teriam alguma chance, os que nunca mereceram coisa nenhuma. Você era avaliado pelo esforço e celebrava suas conquistas. Hoje se passa por decreto e existem as cotas para que o sujeito entre na faculdade sem fazer o vestibular. Abriram as comportas para a ignorância absoluta, e não estou falando em cor da pele, mas em merecer de fato uma vaga no terceiro grau. Nas universidades públicas, montes de pessoas pobres pegam os ônibus para ir para casa. Mas os que possuem automóvel acabam enchendo os pátios, então os ressentidos dizem: vejam como são playboys.

Os ricos continuarão entrando no mesmo número, num sistema de cotas. Quem vai ceder espaço são os pobres, que terão que ficar de fora para dar vez às chamadas cotas raciais. É muita empulhação. Ninguém merece. E fiquei sabendo que houve feriadão tremendo ontem porque era dia da Consciência Negra. Por que feriado? Vai ter o feriado do Orgulho Gay? Ninguém reclama, vai tudo por água abaixo. Meu pai era pobre de pé no chão, vestia pastel na rua. Minha mãe trabalhou a vida inteira e anos antes de morrer, perdeu a casa da família, que foi vendida para pagar dívidas. Todos os filhos entraram na faculdade. Eu fiz montes de vestibular e passei em quase todos (menos um). Vestibular é democrático: entra quem estuda. Melhorem o ensino fundamental e médio e não cometam o crime de sucatear a educação e impor a entrada na faculdade de quem tem como passaporte a cor da pele.

RETORNO - Imagens de hoje: 1. Logo provisório deste jornal, de autoria de Juliana Duclós. 2. A escritora Maria Carolina de Jesus: ela é do tempo em que havia o curso primário e ninguém passava por decreto.

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