13 de novembro de 2006

O TRIVIAL IMPÕE O CERCO





Compro um remédio e, para não perdê-lo, coloco a caixa no bolso furado do meu velho casaco de naylon, levíssimo e colorido de verde e roxo, o que sempre causa espanto quando uso. É a maneira que tenho de chegar em casa com a compra, pois um bolso de trás, ou algo parecido, acaba despejando o conteúdo em frestas, tapetes de carro, meio de quintal. Na hora de resgatar o bruto para o uso, tenho a maior dificuldade de localizar a presa, pois ela se coloca fora de mão e só existe aquela abertura extra do lado esquerdo, por onde enfiei a encomenda, já que no direito está tudo certo. Fico imaginando que o remédio está me pregando uma peça, ou então é o casaco, que pede aposentadoria, que ri da minha cara. Finalmente alcanço o objetivo e fico pensando se não está na hora de prestar mais atenção às coisas triviais, que fazem a festa a maior parte da nossa vida. O épico, o lírico, o romântico, o eterno são detalhes ínfimos, milissegundos que chegam e somem. O que nos resta é ficar preso nos badulaques do tempo que se esvai. E à mercê da observação ligeira de quem passa.

GUERRA - O tédio é o maior inimigo do fotógrafo de guerra, que ao voltar do front não se acostuma à mesmice das coisas triviais. Quer suar, sofrer, se emocionar, viver a transgressão da vida sem limite. É o que vemos no filme O Resgate de Harrison (Les Fleurs d'Harrison, 2000), uma produção francesa de mais de duas horas, que não passou nos cinemas e está disponível nos dvds. É sobre a guerra na Iugoslávia, que segundo depoimento do ator principal, David Strathairn, não foi ainda abordada de maneira suficiente pela literatura, o cinema, o teatro. Guerra encoberta, que explodiu no nariz do mundo dito civilizado e confundida inicialmente com escaramuças étnicas, revelou-se total e genocida. As cenas do massacre são impressionantes. Mulher de fotógrafo internacional vai em busca do marido e lá conta com a ajuda de outros jornalistas, que a encaminham para o lugar onde ele estaria confinado.

BRODY - Quem engole o filme é Adrien Brody , o grande ator que ganhou o Oscar com O Pianista, de Roman Polanski. Brody surge como um incômodo e aos poucos cresce tremendamente até tomar conta de tudo com sua performance. É sem dúvida um dos maiores atores da atualidade. Ele faz o fotógrafo esnobado pela grande imprensa, um freelance que procura espaço e reconhecimento, que se ressente desse descaso e ataca seus pares mais bem sucedidos. Mas se arrepende e empreende uma viagem rumo à loucura. Dá gosto de ver um ator como Brody, nesse personagem cercado pelo trivial e que procura desesperadamente sua redenção, sua auto-superação. E que, ao desistir de si mesmo, a encontra, apesar do custo que precisa pagar por isso. Nas entrevistas, Andie McDowell fala do grande desgaste que foi o filme, não apenas o físico, mas o emocional, pois todos os dias, durante meses, precisava carregar a emoção da mulher que se recusou a ser viúva.

RUMOS - Se você é fotógrafo profissional, ou se você tem uma atividade que a todo momento aponta para a sua vida, ou o mundo que o cerca, verá que existe uma luta contra o trivial. Você precisa sair dessa, descobrir rumos, desvencilhar-se do que o amarra. Como fica difícil, muitas vezes a droga vem em socorro, para desespero geral. O certo é ter uma atividade diária, artística ou não, mas que lhe carregue desse sentimento de permanência, de costura de instantes aparentemente sem sentido. Nada disso tem a ver com a perda do remédio no casaco, claro. Pois as coisas mais insignificantes também oferecem um charme único quando se revelam assim tão sem propósito. Você pode estar simplesmente brincando junto com o trivial que afasta as amarguras. E isso também é bom. Vai saber, nesta vida cheia de mistérios.

RETORNO - 1. Renato Modernell, escritor de mão cheia e gaúcho de Rio Grande, com muitas décadas de janela paulistana, acerta a mão no seu blog e está postando com freqüência crônicas imperdíveis. Vale a pena ler. 2. Imagem de Hoje: Andie McDowell é fotografada por David Strathairn, numa cena trivial doméstica, véspera da aventura trágica.

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