18 de novembro de 2006

OS PEQUENOS PODERES


Está virando lugar comum: presos numa armadilha do trânsito, personagens de filmes de ação dão uma ré poderosa, que dribla os perseguidores. Representa o que já existe na prática. Dar ré significa ter pleno domínio dos movimentos. Você vai por uma rua tranqüila e de repente alguém sai da garagem dando ré. O carro vai até o outro lado da rua e fica em diagonal, impedindo a passagem, sem ter dado nenhum aviso de que faria isso. Depois, lentamente, vai em frente. Dar ré faz parte da imposição das presenças. E faz barulho, pois precisa de muito torque, ou empuxe (nunca sei essas palavras mecânicas) para acontecer. Nem precisa olhar para trás, como se fazia antigamente. Simplesmente as pessoas dão ré sem olhar a quem, pois elas são as chamadas poderosas, que nada devem a ninguém. Chamam a atenção, decidem que elas têm a preferência e também estão no avesso do fluxo, o que as diferencia do resto. Ser cuidadoso na ré está fora da moda. Confunde-se hoje gentileza com fraqueza. Se desconfiam que alguém está pedindo licença para tomar posição correta dando ré, esse é o momento em que se costuma colocar o carro em cima, impedindo a manobra. Implicância? Pode ser. Mas esses detalhes incomodam a vida diária.

FILA - O verdadeiro poder está oculto e não disponível para a grande maioria das pessoas. Então o poder é outorgado para algumas insignificâncias. Faz parte da manipulação. Fizeram uma lista dos gays mais poderosos: lá tem cabeleireiro, promoter, autor de novela, intelectual. Mas nenhum político, nenhum dono portentoso de muita grana. É preciso ocultar o verdadeiro poder e encher de farofa o olhar do público, que assim fica achando que pessoas sem importância (mas com notoriedade, o que é bem diferente) possuem poderes fora do circuito comum. Vai ver são, no fundo, apenas gente que encontraram um caminho para ganhar dinheiro fora do rema-rema cotidiano, esse que nos envolve na busca da sobrevivência e que nos custa a vida. Vemos no noticiário que mais uma poderosa (garotas magérrimas em busca de um pé de meia) morreu de fome. Chovem matérias sobre a importância dos cuidados com a alimentação, mas não há reportagem alguma sobre os verdadeiros culpados, os donos da indústria dessa moda que ninguém usa e que só funciona na passarela. Sabemos também que playboys milionários (há os pobres) colocam as garotas na fila para suas conquistas. É o mercado do prestígio sexual: o marmanjo precisa de uma garota só pele e osso para dizer que é um comedor.

ANÚNCIOS - Vejo Mulheres Perfeitas (2004), dirigido por Frank Oz com roteiro de Paul Rudnick, baseado em livro de Ira Levin (romance já filmado em 1975). É sobre as mulheres poderosas, essas que aparecem sempre na mídia na eterna pauta "as mulheres não são mais as mesmas". Faz uma contraposição entre o feminismo bem sucedido à velha imagem das donas de casa americanas, aquelas que só existiram na publicidade. É um filme sobre poder. Os homens não querem fazer o papel de mulherzinhas e transformam as esposas em robôs (algumas funcionam como caixa rápida, além de alcançar a cerveja e o uísque). A luta é entre o poder conquistado pelo feminismo e o papel subalterno que o tempo teria engolido (a surra que o mulherio leva em casa hoje, segundo as estatísticas, desmente qualquer avanço nesse sentido). O certo é que aquelas mulheres não existiram, a não ser nos anúncios. Vejo pela geração da minha mãe. Mulheres corajosas, com dupla jornada de trabalho, criando inúmeros filhos, segurando a barra emocional da família. Os descasamentos, tão comuns no noticiário de hoje, já existiam há tempos. Não há nada de novo sob o sol. O que há é a manipulação da percepção e muita vaidade, fundada num evolucionismo equivocado. Quando descobrem mulheres normais de antigamente, que tinham tanta personalidade como as de hoje, diz-se que elas estavam à frente do seu tempo. Ninguém está à frente do seu tempo. Pois o tempo é cíclico, como sabiam os povos antigos, ditos primitivos.

PERSONA - A verdade é que é preciso desvestir a arrogância dos "novos" tempos, a partir dos anos 60. Criou-se uma mitologia terrível sobre pessoas e sociedades. O pior é que não existem dúvidas. Todos acreditam piamente que as mulheres ficavam na cozinha e hoje não. Tudo é relativo e a diversidade humana existe em qualquer geração. O imaginário é que precisa se adaptar ao que a realidade impõe. Mas o que vemos é o falso poder que se manifesta nos pequenos acontecimentos. É preciso desmascarar os verdadeiros poderes, os que permitem nossa vã esperança de que somos independentes e livres. Somos escravos e a luta pela libertação não se faz com caricaturas ou preconceitos.

RETORNO - Imagem de hoje: Glenn Close (em destaque, no centro da foto) ensinando aeróbica para as esposas-robôs. Ela está ótima no filme "Mulheres Perfeitas", que tem também no elenco Nicole Kidman, Bete Midler e Matthew Broderick.

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