Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
30 de novembro de 2006
A LUTA CONTINUA
Assim como existem pessoas pagas para mentir no lado comunista, sobra gente da mesma laia no lado oposto. Por motivos que desconheço, a imprensa brasileira continua na Guerra Fria e exulta, praticamente goza, quando enfoca a tal derrota do socialismo para o triunfante capitalismo. Mais realistas que o rei, os jornalistas de TV principalmente adoram dizer que o Vietnã hoje é um tigre asiático, que a Rússia é tão capitalista que parece Chicago dos anos 20, que a China é um capitalismo de estado. O importante é desmoralizar o socialismo usando a bandeira rota do stalinismo e tentando reverter a História, como acontece com essa criatura execrável que é o Oliver Stone, mentiroso profissional sobre a derrota americana para o bravo povo vietnamita. Como no filme "Entre o Céu e a Terra", ele procura justificar o massacre antes da derrota, colocando os guerreiros vitoriosos, os vietcongs, como os últimos seres sobre a terra. Os guerrilheiros são sádicos, estupradores, bandidos na visão tosca de Stone, típico americano que não consegue entender verdade tão cristalina: que os EUA perderam a guerra, assim como estão perdendo no Iraque, para o povo mobilizado e em armas.
MAO - Basta ler qualquer manual da literatura comunista para os caras entenderem como funciona a cabeça de quem fazia a guerra sob a bandeira vermelha (hoje, não sei mais de nada; marxistas traficantes, por exemplo, não são do meu entendimento). Ler o livro de citações de Mao Tse Tung já ajudaria. A guerra anti-imperialista não se faz oprimindo o povo, como acreditam os americanos. Ao contrário: a guerra é a intensificação das contradições que existem na sociedade. Isso se faz pela conscientização de massa, por meio da agitação e da propaganda. Os guerreiros surgem do própria população e não são um corpo estranho a ela. Os comunistas guerrilheiros procuram ser porta-vozes das comunidades e nelas implantam o racionalismo por meio do exercício do materialismo dialético do marxismo-leninismo. É um achado, de uma simplicidade de dar dó. É por isso que os comunistas venceram no Vietnã, porque se transformaram na vanguarda de um povo insurrecto, para usar uma das palavras favoritas das traduções do escritor veronês Emílio Salgari, que se suicidou aos 83 anos depois de uma vida de sacrifícios.
SANDOKAN - Lido por milhões de pessoas, Salgari é um cult e influiu decisivamente nos comics. Seus romances de aventura, com o impagável Sandokan, empolgavam por serem folhetins anti-colonialistas, apesar de a visão colonialista do autor estar impregnado nos seus textos. É um romantismo tardio (palavra predileta dos acadêmicos), da virada do século 19 para o 20, que enriqueceu os editores e empobreceu o escritor, como informa excelente site uruguaio, revelado pela imperdível Cronopios, revista virtual de Literatura que está dando banho de conteúdo. Mas voltando à guerra anti-imperialista: há um esforço para desmoralizar, por meio da desinformação (especialmente a ideológica) as conquistas do socialismo ao longo da História. Como se tudo tivesse sido em vão e dado com os burros n´água. O objetivo é voltarmos para o capitalismo selvagem pré-1930, em que as pessoas eram sugadas na flor da idade até a morte. O que temos de direitos, poucos, escassos, vieram das lutas sociais. E muitos países são socialistas, portanto essa mentira de que o capitalismo é irreversível, sempre o mesmo, e é vitorioso é coisa de apresentador ou repórter embonecado da televisão brasileira. E o sorrisinho de satisfação que eles dão. Cruzes, como são cool.
CONSCIÊNCIA - Para enfrentar a mentira, nada melhor do que o estudo da filosofia. Miguel Duclós informa: "Mais um e-book está disponível para leitura no site. O índice geral está neste endereço.
É o clássico curso de filosofia do estudioso francês Régis Jolivet, especialista em lógica formal e de orientação católica-tomista. Este belo curso era bastante usado no Brasil - tanto no secundário quanto em algumas instituições de ensino superior - até meados da década de 1960 e contém muitas informações sobre filosofia, seguindo uma ordem de exposição temática e sistemática. O Livro I trata da lógica formal sobre a qual pouco havia em nosso site) , o Livro II aborda a Cosmologia (psicologia, ontologia e teodicéia) e o Livro III trata da Filosofia prática (moral). O livro em nosso site foi dividido e organizado em muitas páginas (basicamente uma para cada capítulo)".
RETORNO - 1. Imagem de hoje: close da maravilhosa ilustração de Claudio Levitan para a capa do meu livro Outubro. 2. Meu site, que faz parte do Portal Consciência, está todo reprogramado e atualizado, graças a Miguel Duclós. Está gigantesco: 240 artigos! Ficou mais navegável e bonito. Trabalho de primeira, com acesso amplo e irrestrito.
29 de novembro de 2006
O GÊNIO EM PLENA FORMA
Nei Duclós
Fiquei me perguntando porque A Filha de Ryan, de David Lean, incomoda, já que não fez sucesso e foi malhado ou ignorado pela crítica, na época (1970; depois cai a ficha e todos se arrependem, mas aí o estrago está feito). Carreguei meus arquivos cinematográficos. Robert Mitchum fazia parte de uma linhagem de "mocinhos", ou seja, heróis dos filmes de Hollywood. Na guerra (The Longest Day), no faroeste, nos filmes de amor. Com algumas exceções, como seu inesquecível papel num filme dark em que ele fazia o papel de um assassino. Mas Mitchum encarnava esse protótipo que rege os filmes. Há sempre um herói incontestável. Vê-lo como um professor sem expressão, no litoral perdido da Irlanda, casado com mulher muito mais jovem que pensa em outra coisa, vê-lo abaixar a crista pra a violência, apesar de tentar (para defender a própria honra) enfrentar a turba, é forte demais para o espectador e a crítica acostumados a clichês.
CORAGEM - Lean subverteu tudo. A protagonista é mulher, não o "mocinho". A mulher não é heroína tradicional, fundada na pseudovirtude, mas na imaginação e na coragem. O filme rompe com várias idéias fixas e atormenta o espectador com aquela paixão súbita, entre pessoas em lugares opostos. Há algo de tragédia shakespeareana nisso, pois o Romeu inglês conquista a Julieta irlandesa, provocando a ira da massa. Não há espaço para o amor em tempo de guerra, mas ele assim mesmo se manifesta, e pelo avesso, quando a repressão é muita. No fim, Sarah Miles está só com seu destino. Não pertence ao lado que a violentou ao condená-la, nem ao que a violentou ao possuí-la . Eis o momento em que se manifesta o humano, longe de toda a regra social. A Filha de Ryan é um filme perturbador porque vê poesia onde há profunda transgressão e denuncia a pressão sobre o indivíduo (o professor amarrado, o soldado louco, o palhaço demente, homens e mulheres em fúria). É sobre o indivíduo, mais do que sobre o gênero. No fundo, todos são vítimas (da opressão, da ignorância, da guerra), mas só a protagonista assume toda a carga.
CENA - Minha cena favorita é quando a filha de Ryan está esperando o ônibus para partir, ao lado de John Mills. É quando o chapéu voa para o alto. Sara Miles faz aquela expressão de espanto e abandono. É apenas um segundo, mas inesquecível. É o que mais me marca na memória desse maravilhoso filme. Sem chapéu, fica visível a violência que sofreu quando lhe cortaram o cabelo. É seu momento de fuga, despedida, de uma comunidade hostil. O vento a decifra, a torna transparente. É ela inteira que assoma naquele momento. É com isso que ela conta agora. Só, ao lado da Inocência (o louco manco e feio ao seu redor), ela expõe a culpa de quem a violentou. Sua solidão é seu trunfo. Sua individualidade quebrada, mas digna. É de fazer chorar as pedras.
VIOLÊNCIA - O professor é a Tolerância. Robert Mitchum, esse ator de primeira linha, navega no filme com seu andar único. Se diferencia do resto, aldeões brutalizadois pelo trato com a paisagem (a árdua sobrevivência em meio à fúria do mar). O professor é a compreensão gerada pela cultura, ao contrário da espontaneidade da vida comunitária confinada em ambiente hostil. Mas ele também faz parte da opressão, mesmo se diferenciando dela. Sua Tolerância tem também esse lado de convívio com a violência. Seu andar compassivo, seu rosto impassível, seu silêncio significam degredo para a esposa, que procura uma saída, uma janela, na aventura amorosa. A farda é a ruptura da Mesmice, o conflito e o arrebatamento. Contra esse envolvimento, a comunidade se joga contra ela a partir do sinal dado pela Inocência contaminada pela Frustração (o louco que sabe que nunca a terá, por isso a entrega de bandeja para os carrascos). A denúncia não é feita com palavras, pois o delator é mudo. Mas por meio de uma caricatura: a imitação do gesto e da roupa do militar, nesse momento citado por você, em que o Grotesco assume a feição do Horror.
PLANOS - Mesmo sendo um filme épico na paisagem, em que o Plano Geral parece ser hegemônico na narrativa, ele se define em Primeiro Plano, transformando-se numa contraposição de rostos transfigurados pelo drama: a cara do idiota, a expressão do professor, o susto da mulher e as faces crispadas dos opressores. No fundo, o mundo exterior, a Paisagem em movimento permanente, expressa o terremoto interno das personagens. David Lean, o Gênio em plena forma.
RETORNO - Os posts de hoje estava misturados. O texto acima é a união de minhas intervenções sobre o filme que publiquei no Orkut, na comunidade recém criada sobre o tema. Decidi publicar à parte.
CONCERTO INTERNACIONAL DAS NAÇÕES
O Brasil cavou o lugar que ocupa atualmente no concerto internacional das nações. No filme Simplesmente Amor, feito pelos ingleses, o destaque brasileiro Rodrigo Santoro faz um personagem de nome Carl e não é identificado como natural do nosso país. O enfoque é desviado para uma festa de solteiro, em que as mulheres são travestis brazucas. O evento é lembrado numa cerimônia de casamento, pontificada pelo que a Inglaterra tem de melhor, a música dos Beatles. Aliás, o filme é um auto de fé no modo britânico de ser. Somos lembrados pelos corpos disponíveis, a prostituição e, num outro lugar, o jeitinho, como destacou o jornalista Paulo Sotero numa conferência nos Estados Unidos. Nós é que dizemos para eles como somos. E temos cacife para sermos vistos de modo diferente. Num filme sobre o amor, porque não tocam "A noite do meu bem", obra-prima de Dolores Duran? "Ah, como esse bem demorou a chegar..."
SOBERANIA - E na palestra, em vez de nos condenar por nosso jeitinho ou nos absolver pelo quanto que temos ainda para entregar para os piratas internacionais, por que não se fala na soberania que nos foi roubada? É que desistimos do que realmente somos.Preferimos ser cama e mesa dos gringos. Por que? Porque sim. É por isso que os bancos deram dez milhões de reais para a campanha de Lula. Para o troço continuar como está, ou seja, vai piorar. Ontem conversei com jovem tomando chimarrão de manhã cedo no centrinho aqui do bairro. O rapaz está convencido que o mundo não dura mais 50 anos e por isso não quer ter filhos. Ele acredita que vivemos os últimos tempos, já que faltará água para todos e está tudo envenenado. Não é o primeiro guri apocalíptico que vejo. Descobri que a infância deles foi nos anos 90, bem no pico da certeza do Apocalipse. É uma geração criada para o fim do mundo. É natural que reajam assim e não acreditem que o mundo continuará, sempre em conflito, sempre "acabando de se acabar" como disse Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão.
FRAGOSO - Enfim, os paulistas concordam que havia mercado interno no Brasil colônia, que o país não era essa plantation caribenha, como acreditavam. Só que o crédito não está sendo dado a quem de direito, ou seja, ao historiador do Rio de Janeiro, João Luís Fragoso, que escreveu sobre isso e publicou no livro "Homens de grossa aventura" (Civilização Brasileira, 1998). Na matéria sobre o novo livro de Jorge Caldeira, no Estadão, Daniel Piza atribui a Caldeira a descoberta de Fragoso (este, provou sua tese estudando o Nordeste, mas sua sacada serve para todo o Brasil). Lembro que falei em Fragoso na USP e ninguém sabia e quem sabia, saltou. É que ele não é das margens do Ipiranga.
GUERRA - Como se sabe, a Guerra da Independência foi enterrada pela historiografia focada em São Paulo, que elevou às alturas do Grito do Ipiranga. Três anos de luta na Bahia e em todo o Nordeste não serviram para nada. A entrada triunfal das tropas brasileiras em Salvador também não serviu para nada. Ficamos com a tese fajuta de que as Cortes Portuguesas entregaram oito milhões e meio de quilômetros quadrados de mão beijada. Milhares de mártires da Independência jazem esquecidos nos campos de batalha da Bahia, Maranhão, Piauí. Enquanto difundimos a tese de que não somos de nada, terra do jeitinho, apenas um não-país que merece gargalhadas. "Levantai-vos, heróis do novo mundo", como já dizia o poeta.
RETORNO - Diz um site baiano, de onde tirei a imagem de hoje: "A comemoração do dia 2 de Julho é uma celebração às tropas do Exército e da Marinha Brasileira que, através de muitas lutas, conseguiram a separação definitiva do Brasil do domínio de Portugal, em 1823. Neste dia as tropas brasileiras entraram na cidade de Salvador, que era ocupada pelo exército português, tomando a cidade de volta e consolidando a vitória".
28 de novembro de 2006
LEITURA DA POESIA SELVAGEM
Nei Duclós
Até as metáforas cansam, por mais que funcionem nesse jogo de caça que é a leitura. Precisamos nos insurgir contra esse cansaço. Metáfora é fiambre, serve para salvar a vida no meio da madrugada. Uso metáfora quando ninguém está vendo, porque hoje pega mal. Tudo pega mal, hoje. O esnobismo intelectual viceja em todos os cantos. Mas para quem tem os sapatos rotos de tanto andar no pedregulho literário, isso não importa. Prefiro pegar a unha a poesia mutante de Ricardo Silvestrin, que nos engana pela leveza ("Não tenho todo o tempo que preciso para escrever um grande poema conciso"), nos seduz pelos materiais aparentemente concretos que usa (a cidade, o time de futebol, a personalidade pública, os filhos, os poetas) e nos impressiona pelo leite que tira das letras que formam palavras e denunciam essências, liberam fragrâncias e inventam ritmos. É uma poesia profunda por não negar sua aparência. E que se impregna na memória, apesar de sugerir que poderá ser esquecida.
PROPOSTA - Dividido em três capítulos - Manchas, Quieto no meu Canto e A Poesia de cada dia - o livro O Menos Vendido (Nankim Editorial, 336 páginas), de Ricardo Silvestrin, é filosofia pelo que entende da palavra, é proposta pela enorme conjugação de vetores da poesia brasileira, é reportagem pelo convívio criativo com os contemporâneos, e é só poesia pela nudez com que convoca o leitor. É muita coisa num livro só, que se lê como se estivesse viajando de trem. Foi assim comigo. Li numa redada, ou seja, numa só sessão de rede, na varanda, em sábado de mormaço, com besouros interrompendo o verso e pingos de chuva pedindo atenção.
ESTAÇÃO - Às metáforas, cidadãos. Poesia não tem fim da linha, apesar de tantos poetas definitivos que nos encantam por terem dito (acreditamos) tudo. Aparentemente, o trem parou para sempre (é o que nos parece, a nós, leitores exaustos de tanto verbo perfeito) numa estação fantasma, onde o poeta recém chegado tenta embarcar. Ele sabe que não haverá viagem de volta. Na cabine, ele pode ver os posters dos mestres com seus garranchos tantas vezes decifrados e consumidos. Mas o poeta da primeira viagem tem um trunfo: a janela, de onde se descortina a poesia, continua atuante, e a paisagem é sempre outra, por mais que digam que é a mesma. O que o poeta emergente não deve negar, é que tudo já foi dito e por isso mesmo outro tudo precisa ser reinventado, desde que não se volte à origem pensando que se chega a algum destino.
REVOLUÇÃO - Sabendo que o concretismo e o modernismo já esgotaram os cartuchos da insurgência, o poeta deita e rola : "Vou me rebelar contra mim/ tome isto, tome aquilo/ Ricardo Silvestrin". É o fim dos movimentos, há tempos decretado pela extrema diversidade da poesia. Não se faz um trabalho de demolição do que quer que seja se o edifício que conserva os poemas mortos não existe mais. É como se um condomínio inteiro de luxo estético e de contundência viesse abaixo pelo simples movimento de rotação da Terra. "Vão-se os papéis, ficam os textos", diz o poeta, que redescobre um outro monumento: a permanência, o que fica mesmo quando a cidade some, e a civilização entra em outra. Já não depende mais de livro nem mesmo de autores, mas desse sinal riscado em pedras virtuais de encantamento: nome de batismo para todas as coisas, leitura, sacrifício de quem se constrói fonema a fonema. É um paradoxo: nada importa nessa composição de eternidades.
LACRE - Como palavra não é jogo, embora a poesia se preste a isso (é o equívoco maior dos pseudopoetas), vamos decidir (escolher, precariamente) o que conta em Silvestrin. A paisagem mutante vista da janela fica retida na memória e se esvanece. É a poesia, dizem. Nem tanto. Cada fotograma percebido tem sua consistência, sua força, sua densidade. O poeta passa a mão recolhendo essas flores do asfalto, mas sua poesia não é o ramalhete, mas o chão que o gerou. Por isso é impossível, quando dois poetas se encontram, falar sobre poesia. É incomensurável o espaço ocupado pela poesia de cada um no latifúndio da criação. Quem inventa, está só (mesmo que precise de bandos, como os pássaros de arribação). Quando há o encontro, o lacre se solta, como diz Silvestrin, mas acredito que o vôo continua isolado. Queremos pomba, mas somos águia.
SACRIFÍCIO - O olhar do poeta fisga a isca do leitor fujão. Nessa poesia selvagem, a única lei é a leitura (para usar a metáfora do próprio poeta). Queremos chegar ao fim do livro, para saber onde quer chegar. Mas ele chega onde embarcamos, nesse trem liso como dorso de mar em dia nublado. Quando descemos, podemos até ter esquecido o livro em cima do banco. Mas os poemas nos acompanham, "como filhos que esquecem seu berço", como diz o poeta em uma de suas inúmeras metáforas. Sim, ele as usa sem nenhuma vergonha. Em dia claro, solar, da sua continência verbal: "um poeta se faz com sacrifício/ é uma afronta ao custo-benefício". O que torna O Menos Vendido um objeto essencial de uso, aparentemente descartável no confronto de tantas necessidades, mas insubstítuível pela denúncia que faz sem levantar bandeiras. A poesia vale pelo que lemos, não pelo que pagamos. Se vale tanto, vende, contrariando assim o boicote da idéia fixa (poesia não vende) sobre algo tão real quanto uma cerveja, com uma vantagem: jamais dá ressaca.
RETORNO - 1. Imagem: foto de Marcelo Min. O assombro da leveza na cidade de concreto.2. Em "O Menos Vendido", sou citado como um dos poetas lidos pelo autor aos 16 anos. Meu livro de estréia, Outubro, está bem acompanhado por Oswald de Andrade. É a leitura generosa desse objeto não domesticável, a poesia.
ERA ÁGUA QUE DEUS MANDAVA
Era o que meu tio Waldemar Ortiz dizia quando chovia demais no front das guerras das quais participou (1923, 1924, 1926, 1930). Significava uma trégua forçada no tiroteio. Ou, quando corria bala, havia a jorro do céu para atrapalhar. Chuva é um transtorno na batalha, mas não deveria ser na vida normal. O que chamam de pontos de alagamento em São Paulo são apenas sinais explícitos da falta de políticas públicas a favor da urbanização. Chove e a cidade vem abaixo. O Brasil não foi feito para chuva. Não sobra dinheiro para as obras. As calçadas, os bairros, as ruas, ficam intactas durante décadas. Não existe essa obrigação por melhorias.
TRABALHO - Por sorte, aqui em Florianópolis, a Prefeitura é bastante dinâmica e tem feito bastante coisa, pelo menos os trabalhos visíveis, como asfaltamento, recapeamento, colocação de lajotas, implantação de passeios públicos. Aqui no norte da ilha, há muita máquina funcionando e gente trabalhando todos os dias. É a primeira vez que vejo uma prefeitura trabalhar, pelo menos depois de 1964. Quando criança, todos os anos o prefeito mandava plantar árvores por toda a cidade. Muitas sobreviveram e fazem a alegria da fronteira. E nem se falava em ecologia.
PÃO - Em todas as profissões (inclusive no jornalismo), a palavra é insumo para se ganhar a vida. Só na literatura ela é o próprio pão que a vida amassou. Isso se você decidir ser um escritor profissional. Comigo aconteceu o seguinte: usei as redações para publicar minhas coisas. Encruava num lead, numa resenha, numa reportagem (esse pulo diário para a ficção) o que precisava fazer na literatura. Perdi meu tempo, dirão, mas ganhei a vida, que perdemos sempre, que se escoa pelos minutos do dia. Nas entrelinhas, entreatos, horas livres (raras), a literatura formatada em livro, antologia, e depois, internet. Troquei palavra por pão. Profissão estranha, a do escritor. Causa estranhamento, mas nem tanto. O autor precisa estar identificado com as pessoas, a comunidade, a paisagem. Assim fica mais fácil ser reconhecido. É um trabalho diário, que dá certo. Pessoas que jamais entram numa livraria, gostam de saber que lancei um livro sobre eventos (personagens, estações, praias) da ilha. E reagem muito bem.
CARTA - Nos meus arquivos, revisito carta maravilhosa de Cláudio Levitan, o Iluminado. Ele escreve sobre meu romance Universo Baldio (que está sendo torrado em sites da internet, a preço baixíssimo). Levitan me escreveu logo depois de ter me visitado na Feira do Livro de Porto Alegre em 2005: " Nei, Ainda estou zonzo com tanta emoção. Aquela tarde maravilhosa em Porto Alegre. A feira do livro sempre é premiada com muita chuva, mas tem dias de sol e brisa que a tornam o lugar mais lindo do mundo! Foi justamente o que ocorreu no teu dia. Que linda tarde de primavera acolhendo nosso encontro.
Saí de lá feliz por reencontrar amigos de tanto tempo atrás e de te ver o mesmo, o sempre poeta cheio de melancolia e humor!! Não protelei a leitura do teu Universo Baldio, já saí lendo ali mesmo no ônibus e fiquei com ele todos esses dias sorvendo cada parágrafo. Cara!! Que maravilha um poeta tornar-se romancista! Tudo é poesia e tudo é história. A vida toma uma outra dimensão e já me veio uma angustiosa espera pelo novo livro. Conta de ti, fala de ti, deixa tua mala/alma rolar ladeira abaixo com suas folhas voando voando como teus pássaros em liberdade plena, com teus angustiosos debates internos sobre as escolhas e nos permite acompanhar teu deleite aos sorver palavras e pensamentos! Na primeira parte de teu livro (o primeiro tempo), lembrei-me do caio que falou daquela mesma época em seus livros sob uma ótica tão dilacerada e corajosa, com seu olhar castanho escuro, e te senti parceiro daquelas viagens, mas transitando com outra melodia igualmente dilacerante sob teu olhar azul claro. E senti saudades de outros livros teus sobre este mesmo período. Saiu com tanta precisão e humor que reviver aquele tempo foi um enorme prazer.
Quando iniciou o Segundo Tempo, descobri um outro nei, cinematográfico, em que a fantasia não vem para aliviar mas para reconstruir a vida. O tempo não é obstáculo para a palavra. A história é fantástica como todo o pampa, e como a vida de uma pessoa. Pura poesia. Emocionante. Tenho falado a todos, leiam o Universo Baldio, é uma milonga falando sobre o Brasil, sobre São Paulo, o sul do Brasil, sobre o interior do brasileiro. Cara, gostei muito!!! E gostei muito de te ver com o mesmo sorriso gostoso entre divertindo-se com tudo e consigo mesmo, mas dolorido com a tragédia geral. Há sempre esperança nas tuas palavras. E é isto o que vale. Um enorme e apertado abraço do teu fã, sempre e mais, Cláudio".
RETORNO - 1. Imagem de hoje: tremenda foto de Helcio Toth. 2. Ainda estou devendo a resenha sobre o novo livro de Claudio Levitan, "Pimenta do reino em pó". Escritor, compositor, arquiteto, desenhista, Levitan é talento de sobra, que nos deslumbra com sua grandeza e generosidade.
24 de novembro de 2006
O IMPÉRIO DA MOTOSERRA
Como não tenho dinheiro para comprar jornal e acho que papel demais em casa é transtorno, me abstenho de investir nessa área, com algumas exceções. Quando sobra um troco, compra a Folha de São Paulo, já que aos jornais catarinas eu tenho acesso no emprego. A fonte é mesmo a Internet. Amigo meu me envia reportagem do Valor que diz o seguinte: "Em franca campanha pela reeleição à Presidência da Câmara, o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) surpreendeu ontem ruralistas e aliados ao defender o plantio de soja e a criação de gado em áreas da Amazônia. Porque não podemos ter pecuária na Amazônia? Porque não a soja? Não estou convencido disso, disse. Não via, quando jovem, a ocupação do cerrado como uma tragédia, mas como um avanço. O produtor [que planta na Amazônia] não pode ser tratado como um criminoso".
MOTIVOS - Respondi ao amigo que esses são os nossos comunistas. Cabem direitinho no que a direita sempre disse deles: vendilhões da Pátria. Cumpriram a escrita direitinho. Jamais foram a favor do Brasil. Ajudaram a destruir o país. Deram todos os álibis (1935, com a Intentona, 1963, com a radicalização sindicalista e 1969 com a guerrilha) para o fechamento ditadorial que acabou com a democracia.Sem esquecer que o crime organizado, as quadrilhas das favelas a partir dos anos 70, nasceu na Ilha Grande, por inspiração dos comunistas presos. Lembro sempre George Orwell em Lutando na Espanha, que se referia ao representante comunista stalinista como uma pessoa "paga para mentir". Graças aos comunistas, Franco venceu. Stalin deu força e acabou com a república, junto com o fascismo franquista. É por isso que eles tem horror a Getúlio e a Brizola, que são de outra estirpe, a do Brasil Soberano, que conseguiu nos levantar por mais de 30 anos (por concidencia, todos nossos gênios são da era Vargas, pode fazer o balanço) até que finalmente a nação sucumbiu com o golpe de 64. O comunismo brasileiro é a burrice estratégica de Prestes, a porralouquice de Mariguella, e essa figura que é o Aldo Rebelo, o mais confiável step-president que a direita poderia sonhar.
CINISMO - Claro que o cinismo dirá que Getúlio e Brizola eram pecuaristas, então estariam a favor do gado na Amazônia. Replico com Darcy Ribeiro, que tinha horror a essa política que acaba com os ecossistemas brasileiros e que serve apenas para exportarmos proteína, enquanto o povo literalmente pasta capim seco. A argumentação de Aldo Rebelo é assim: "Os brasileiros sabem que é necessário preservar a Amazônia. Mas os critérios de preservação devem atender aos nossos interesses. Não podemos aceitar imposições e ingerências estrangeiras", afirmou. "Onde estão as florestas e as populações nativas dos Estados Unidos e da Europa?" Preservar então é destruir a mata. Plantar soja e criar gado é preservar? Se os gringos destruíram a mata e nós não, viva o Brasil, que soube se preservar. Ainda dispomos da mata, porque o Imperador proibia até navegação de cabotagem no Amazonas. Se fosse como um dos atuais estadistas, teríamos um enorme Saara e da mata apenas lembranças.
CELULOSE - Mas tem coisa pior ainda, mais ao sul. Outro amigo (se me derem licença de dizer quem são, direi) me envia pensata de um ex-editor de economia sobre o que está ocorrendo no Rio Grande do Sul, em que as fábricas de celulose querem implantar a fedentina braba das suas indústrias poluidoras, sob aplausos da mídia comprada. Diz esse outro amigo que "a Aracruz, a Votorantin e agora a finlandesa Stora Enso estão derramando reais e euros em forma de publicidade e bocas-livres (um grupo de repórteres e editores gaúchos está passando uma temporada na Finlândia) na mídia gaúcha para fazer a cabeça de empresários da comunicação, jornalistas e - por conseqüência, da opinião pública do RS".
ATIVOS - Na Finlândia, diz o ex-editor, "os plantios são feitos em pequenas propriedades, embora o corte (e talvez o plantio) seja mecanizado, provavelmente em sistema de consórcio com a empresa. Aqui, implanta-se, sob os aplausos quase gerais, um sistema monocultural em grandes extensões (centenas de milhares de hectares), que empobrece o solo, impede a proliferação de várias espécies nativas florestais e animais, além de concentrar a renda. Na Finlândia, como se vê, é valorizado o pequeno produtor, dando-lhe condições de ser competitivo, ou até subsidiando-o. Aqui, sufoca-se o pequeno, comprando-lhe as terras e tornando-o mero empregado ou simples pária urbano, sob as fanfarras de certo tipo de jornalismo. O que há é que o capital, ante a grave crise mundial que se desenha com a derrocada do dólar, procura ancorar-se em ativos reais, no caso imóveis rurais, deslocando para a periferia ou a marginalidade os ex-donos da terra. Com nossos incentivos, isto é, nosso dinheiro".
RETORNO - Imagem de hoje: menino no Pará com ave de rapina, de Marcelo Min. A foto faz parte de prometida reportagem feita por ele e Fabio Murakawa, que será publicada em dezembro. Min e Gim Tones são a maior dupla de repórteres do Brasil.
23 de novembro de 2006
NATUREZA E SOCIEDADE EM MONTEIRO LOBATO
O modernismo é um movimento amplo, que extrapola a Semana e o enfoque paulistano (da capital). Nasceu do inconformismo do talento diante da Mesmice da cultura, que estava amarrada a velhos esquemas agrários, culturais, políticos. É pioneiro mais no Rio de Janeiro do que em outros lugares, e não se circunscreve apenas à literatura, mas à caricatura, ao panfletarismo, ao deboche e à denúncia pura e simples. Vejo Monteiro Lobato como um dos primeiros modernistas e sua importância revolucionária foi reconhecida mais tarde pelo próprio Oswald de Andrade, quando se reconciliou com ele depois de anos de rusgas e ressentimentos.
FONTES - Mas Lobato era turrão e inconformado demais, e além disso, vivia no Interior, para fazer parte de um movimento de inspiração européia. Lobato bebia em fontes abundantes da literatura universal e aferrava-se à narrativa coesa, eficiente e encantadora, inspirada pelo mato que o cercava. Kipling e Maupassant são suas referências em Urupês, livro pioneiro desse modernismo do fundão, uma obra generosa em neologismos e soluções narrativas radicais (onde uma onomatopéia, como Bééé, tem a força de muitas parágrafos). Nessa sua radicalidade, a abordagem que faz da natureza, como parte da estrutura social, é única.
PAISAGEM - Ninguém descreve a trajetória do sol sobre a paisagem brasileira como ele. O amanhecer é a promessa do país ainda virgem da devassidão européia, que tem uma chance na esperança de ser um lugar agradável de viver, onde poderia imperar a harmonia e o equilíbrio entre as pessoas. Mas quando o dia avança e a bigorna do sol acaba tisnando a paisagem, eis que se revela o país insuportável, onde medra o fogo e o crime ecológico (um aspecto pioneiríssimo da sua obra, como notou Clovis Heberle no comentário do post anterior sobre Urupês aqui no Diário da Fonte). É na devastação da natureza, reflexo do mau uso da terra, que confina os homens nos ermos sem cidadania e deixa impune a elite cruel e exploradora, que o Brasil mostra a cara. Mas ainda é cedo para demonstrar todo o horror que a paisagem inspira. Quando chega o entardecer, com ele chega a tristeza, o banzo, o desespero da solidão na natureza entregue ao sabor da maldade humana.
FANTASMAS - A noite então vem com seus fantasmas e assassinatos, como no conto inicial Os faroleiros, em que dois sujeitos diante do breu compartilham uma história de terror ocorrida num farol perdido no meio do mar. Apenas duas pessoas moravam no farol e isso bastava para haver o conflito, o ódio mútuo, a desconfiança e por fim a violência. Não há como insurgir-se contra o império natural da sociedade de classes, dividida no país que poderia ser um paraíso. No conto Bocatorta, a feiúra de quem vive entocado, expulso da comunidade, no meio de uma clareira imunda, revela um Quasímodo brasileiro, encarnando todos os preconceitos existentes contra a humanidade que veio habitar a nação. E na história em que dois vizinhos se atracam devido às diferenças de personalidade e interesses, não há como melhorar a produção que acaba sendo devorada pelas pragas. Em outro conto, um filho adotado imita o mata-pau, destruindo a família que o recebeu.
FATALIDADE - O resultado dessa fatalidade da natureza, como reflexo da incompetência humana de se resolver em sociedade, é o estigma de nascença, rastro de um assassinato gerado pelo ciúme. O pessimismo das histórias nada tem a ver com o romantismo velho de guerra. É pura ponte entre a natureza destruída e a sociedade descosturada, ambas territórios de frustração e miséria. Foi essa lucidez e essa radicalidade que jogaram Monteiro Lobato para o alto no cenário das letras nacionais. Urupês vendeu como pãozinho quente. Todos queriam enxergar o país oculto na ramagem, todos queriam ter acesso à verdade que se escondia sob toneladas de papel e fingimento.
RETORNO - Imagem de hoje: esse rosto de Monteiro Lobato nos acompanha desde o início dos tempos.
22 de novembro de 2006
HUMOR E DENÚNCIA EM MONTEIRO LOBATO
Nei Duclós
Participei recentemente de um debate no orkut sobre a velha calúnia de que José Renato (mais tarde, Bento) Monteiro Lobato era racista. Por sorte, chegou até aqui na ilha, via correio, enviado por Laís Heberle, o livro Urupês, o fundador da literatura lobatiana e um dos livros, como tudo em Lobato, que é uma sementeira farta de criação e nacionalidade. Com 14 contos e um artigo, o livro é um primor de construção literária (o boxeador Lobato não perde uma só frase, nenhuma letra é colocada em vão). Por que levei tanto tempo para ler essa obra que praticamente fundou a indústria editorial no Brasil, pois seu sucesso viabilizou a empresa do autor numa época em que os livros eram impressos na Europa? Sei lá. Só sei que fiquei energizado de novo com o texto lobatiano, como acontecia quando eu mergulhava, anos a fio, no Sítio do Pica-Pau Amarelo. É o meu escritor favorito. Pelo que faz com a palavra, parece que o vemos contando histórias. Enxergamos claramente o conteúdo de sua narrativa, inventiva até o osso e brutal, de uma brutalidade lúcida e humana que nos faz falta como nunca. E que se presta, exatamente pela sua força, a inúmeros equívocos.
POSSE - O grande feito de Lobato nesse livro foi denunciar o esquema que domina o país por meio da política e da posse e mau uso da terra. A malandragem, a mentira, a crueldade das pessoas poderosas escorrem como fel das páginas destas narrativas. A chamada elite (o grupo privilegiado que se beneficia de toda essa bandalheira) impera na nação roubada, vilipendiada e por isso mesmo, condenada ao atraso. Mas Lobato sabia de tudo. Não iria fazer uma denúncia pão-pão,queijo-queijo. Ele simplesmente vira o binóculo ao contrário e seduz o leitor (os brasileiros vítimas desse sistema de exclusão e que estão em todas as classes sociais, especialmente a classe média, que comprava seus livros) criando a representação da ponta do varejo da exclusão. Sua definição do caboclo, que não deita raízes sobre a terra latifundiada, e é tocado de um ermo para outro, é o poder escancarado dos coronéis do mando e do garrote. Ao inventar o Jeca Tatu, Lobato decifrou a unha encravado da vida comunitária no Brasil. A partir do Jeca, toda uma linhagem cultural se formou, de Mazzaroppi à música sertaneja. O que ele denuncia como ausência de arte no caboclo acabou se transformando em arte popular genuína, pois o povo entendeu o recado e assenhorou-se do retrato para tornar-se visível na nação cega.
ROUBO - Apesar de um recado tão explícito, o trabalho de Lobato costuma gerar calúnias sobre ele. Pode-se imaginá-lo preconceituoso em relação ao povo e a suas artes. Pode-se tachá-lo de elitista bruto ao comparar o caboclo a uma praga silvestre. Mas seria pobreza mental em demasia não ver exatamente nisso que parece ser preconceito ou racismo, o toque genial de sua personalidade literária. A terra roubada nos cartórios e na política serve só de enfeite para o enriquecimento, pois este vem do compadrio, das propinas e dos golpes. Ao descrever a fazenda do ex-colega da faculdade que enriqueceu com o casamento, Lobato explica: "Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava longo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-o no pé de quem não precisava da propriedade para viver." No clássico O Comprador de Fazendas (transformado em filme), a terra dá prejuízo e apenas engambelando os possíveis compradores será possível tirar o pé da jaca. Em Um Suplício Moderno, ele diz textualmente: "É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país". Um país das Arábias segundo sua definição, em que medram o analfabetismo e o aliadismo e a falsa literatura ("o romance traduzido de Jaime Ohnet").
AVISO - Ao longo de todo o livro, o leitor tem a chance de gargalhar com as tiradas de Lobato, criador de vários neologismos como olhodaruável (situação dos que têm chances, depois de uma eleição, de ir para o olho da rua). Nem se trata de ironia, esse biscoito fino de massas sedosas. É escracho mesmo, é galhofa, é coragem de dizer com todas as letras o que vai pela nação embasbacada. Foi por essa contundência que Lobato fez sucesso e se destacou como a grande personalidade do primeira metade do século vinte. Uma obra que causa polêmica ainda hoje, pois os inimigos de Lobato continuam por toda a parte: os burros titulados, os medíocres cruéis, os carreiristas. E as vítimas apontadas por ele continuam na boca das elites imbecis, ainda convencidas de que o povo excluído é igual ao caboclo descrito por Lobato há cem anos. Esqueceram da profecia de Antônio das Mortes, o matador de cangaceiro (o caboclo nordestino que se insurgiu) em Deus e o Diabo: "Ainda vai haver uma guerra grande nesse sertão". Depois não digam que Monteiro Lobato não avisou.
RETORNO - Imagem de hoje : capa de J. Wasth Rodrigues para Urupês, 1ª edição, 1918. O desenho se refere ao conto "O mata-pau" sobre o hábito endêmico de sugar a vida alheia que existe em todo o tecido social no país à mercê da incúria.
21 de novembro de 2006
O AVESSO DO ABISMO
A ética de Santos Dumont, o brasileiro que empreendeu sem pedir nada em troca, a não ser a eternidade (*)
Nei Duclós
Dois eventos foram fundamentais para o brasileiro Santos Dumont ficar na história: cinco milhões de dólares de herança familiar, e Paris. O dinheiro liberou-o para o estudo e as experiências e semeou nele a generosidade de quem se sentia na obrigação de retribuir o gesto da Fortuna. A cidade promoveu o ambiente adequado, cercando-o de instrumentos, recursos, estímulos. Lá, ninguém iria debochar do seu sonho nem invejar suas conquistas, como acontece numa cultura marcada pela frustração e o ceticismo.
É costume lamentar o desprendimento do gênio que decifrou o enigma de fazer o mais pesado do que o ar levantar vôo. Como pôde deixar escapar o crédito de ter determinado os princípios da aviação adotados até hoje, por meio não só do 14-Bis, que saiu do chão em 1906, mas de sua extrema inovação, o levíssimo (11 quilos) Demoiselle, feito de bambu e seda japonesa? Por que abriu espaço para os Irmãos Wright, que juraram a precedência quando de fato apenas se atiraram em queda livre com um avião de 300 quilos que jamais teria condição de desgrudar da terra?
Quando sabemos que ele liberou os detalhes técnicos do Demoiselle para que os fabricantes americanos iniciassem uma produção em série, nos perguntamos por que Santos Dumont não dispunha da visão futurista de saber que de seus inventos nasceria uma fonte poderosa de fazer dinheiro, que poderia existir até hoje? Ao abrir mão da patente, ao sonhar com um projeto de humanização do vôo, quando achou que não haveriam espertalhões para colher os frutos de suas idéias, Dumont contrariou todos os princípios do empreendedorismo, prontamente assumidos pelos irmãos Wright.
É risível as gambiarras teóricas feitas pelos que comentaram o centenário do pai da aviação, que se comemora este ano. Os Wright teriam sido os primeiros a voar, mas Dumont foi realmente o inventor do avião, disse uma fonte. O primeiro a voar foi Bartolomeu de Gusmão, no século 17, quando colocou um balão no ar. Nem essa precedência os americanos possuem. É fato que estes são especialistas em queda livre, tanto é que a falta de gravidade do universo astronáutico nada mais é do que o resultado de uma interminável queda livre pelo cosmo.
Mas se tecnicamente os americanos caíram para a glória que não mereciam, como empreendedores subiram para o Olimpo. Fizeram tudo o que manda a moderna cartilha das consultorias: patentearam o invento, que não era deles, e não intrometeram nos produtos alguns obstáculos como a ética. Pois a primeira coisa que fizeram foi colocar a invenção a serviço da guerra, exatamente o oposto de que pregava Santos Dumont. A Belle Époque, onde o brasileiro voador viveu, foi o esplendor de quase um século de paz, cortado brutalmente em 1914 com o início da Primeira Grande Guerra.
Passados cem anos, e em plena fase de responsabilidade social e outros exemplares da fauna do politicamente correto, é de se perguntar: Dumont estava certo? Será que seu gesto não foi muito mais profundo e inovador e garantiu-lhe a eternidade? O fato é que, com o centenário, aos poucos afrouxou-se o círculo de ferro da exclusão a que fora condenado. Figura admirada e cultivada no Brasil, deixou de ser um herói oficial desde que o país abriu mão de sua soberania econômica ao assumir uma dívida externa crescente e impagável. Ele jamais é citado como o verdadeiro inventor do avião, já que os verbetes das enciclopédias dão de barato que os dois fabricantes de bicicletas, encerrados no ermo absoluto do interiorzão americano, é que foram os pioneiros. E sua complicada vida pessoal, depois que deixou Paris, custou-lhe o prestígio após a morte. Para isso contribuiu sua fama e sua transformação em herói nacional. Era preciso desconstruir o mito, praga que assola especialmente o Brasil, já que as outras nações preservam seus heróis, pois neles repousam as bases do imaginário nacional.
Desterrado em sua própria terra, para usar a expressão de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o brasileiro Dumont cumpriu a sina dos que contrariam a barbárie: foi excluído, esquecido, caluniado. Mas ele agora volta com força, mesmo cercado de limitações dos que não conseguem admitir seu pioneirismo. Há livros que tentam fazer justiça. É o caso de Santos-Dumont e a invenção do vôo, (Jorge Zahar Editor, 192 páginas ), de Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que reuniu cartas, fotografias e desenhos. Há ainda O que eu vi, o que nós veremos, Santos Dumont (Hedra, 2002). E a imperdível biografia de Marcio Souza, O Brasileiro Voador (Editora Marco Zero). Entre muitos outros.
O centenário deveria promover um debate sobre a vocação do brasileiro para a inovação, sobre o desprendimento e a ética no mundo dos negócios, sobre a importância do mito na formação do país, e nos prejuízos dessa exclusão de um inventor reconhecido mundialmente, que exibiu sua performance na cara do mundo civilizado. Se Santos Dumont, apesar das provas, foi deixado de lado, é certo que o motivo é estratégia imperial. Os Estados Unidos jamais reconheceriam que não foram eles que inventaram o avião. É uma questão de honra nacional. O Brasil cultivou seu herói, mas não soube se impor. Inclusive a exclusão voltou-se contra os próprios brasileiros, que estão convencidos de que foram os Irmãos Wright que merecem o crédito.
O fato é que Santos Dumont pensava num mundo diferente, projetava-se para o futuro e só agora, passados cem anos, é possível colher alguns frutos de sua dedicação e esforço. Conforme o tempo irá passando, é certo que o herói brasileiro, pelas lições que deixou, será cada vez mais reconhecido e admirado. Inclusive pelos empreendedores, que fatalmente terão que mudar de percepção. É necessário mudar para que o mundo sobreviva. As invenções, os negócios, as nações, precisam entrar num novo patamar de cultura e entendimento, por mais utópico que isso possa parecer.
Ao contrário da queda livre, Santos Dumont é o avesso do abismo. Ensinou como transcender às limitações terrenas e levantou a luz do seu gênio diante do mundo totalmente a seus pés. É o sonho não só dos heróis, mas dos corações que deveriam governar o mundo.
RETORNO - (*) Este texto foi publicado na edição número 145, deste mês, na seção Leitura, da revista Empreendedor.
20 de novembro de 2006
MERECER, O VERBO DA MODA
Eu mereço, você merece, nós merecemos, eles merecem. Merecer, o verbo da moda, era usado apenas como ironia, hoje é levado a sério. Há muita complicação, que deixa as pessoas estressadas, então elas se compensam, portanto, merecem. No fundo é o velho apelo psicológico de consumo. Você perdeu alguma coisa na vida diária (tempo, dinheiro, suor, emprego), então merece algo que o livre desse desconforto, que o aliene do que está se passando. Quer dizer também algo mais profundo. Você não merece ficar preocupado com os outros, só consigo mesmo.
O sacana fez de tudo para conseguir aquela grana, então ele merece tudo o quem tem. É o recado do egoísmo guindado a status social de primeira classe. Serve também para justificar erros: políticos e povo se merecem, por exemplo. O povinho é tão ruim que merece o congresso que elegeu. Isso tira a responsabilidade da máquina de corrupção e de marketing que serve para reentronizar o Mesmo a cada eleição. Fica tudo por conta do Zé Ninguém.
Merecer é o álibi perfeito para fazer tudo errado e ganhar com isso. Mas eu mereço! é o brado retumbante. Merece nada. Merece uma boa tronfa por trás. Não merecemos coisa nenhuma. Lutamos como loucos porque essa é a vida que nos deram para viver sobre a terra. Nascemos do sacrifício de outras pessoas, nossos pais, a quem jamais demos a verdadeira importância quando devíamos. Hoje fantasiamos sobre isso, mas a verdade é que família é um sufoco até percebermos que o sufoco faz parte da vida.
Você não merece fazer o que bem entende, tem que prestar contas. Nem viajar assim no más sem dar satisfações. Nem usufruir de tudo o que acha magnífico só porque está escrito em algum lugar (anúncio, de preferência). Você merece é o rombo que fez achando que merecia alguma coisa. Agora merece ser fuzilado ao amanhecer porque uma coisa é a vida sem a presença da morte e a outra é a realidade, quando acordamos para a presença de Deus.
O que aconteceu com a linguagem? Foi substituída por um robô, que obedece ordens superiores. A meritocracia, sonho da época em que havia educação de qualidade no Brasil, foi jogada rampa abaixo pelos que jamais teriam alguma chance, os que nunca mereceram coisa nenhuma. Você era avaliado pelo esforço e celebrava suas conquistas. Hoje se passa por decreto e existem as cotas para que o sujeito entre na faculdade sem fazer o vestibular. Abriram as comportas para a ignorância absoluta, e não estou falando em cor da pele, mas em merecer de fato uma vaga no terceiro grau. Nas universidades públicas, montes de pessoas pobres pegam os ônibus para ir para casa. Mas os que possuem automóvel acabam enchendo os pátios, então os ressentidos dizem: vejam como são playboys.
Os ricos continuarão entrando no mesmo número, num sistema de cotas. Quem vai ceder espaço são os pobres, que terão que ficar de fora para dar vez às chamadas cotas raciais. É muita empulhação. Ninguém merece. E fiquei sabendo que houve feriadão tremendo ontem porque era dia da Consciência Negra. Por que feriado? Vai ter o feriado do Orgulho Gay? Ninguém reclama, vai tudo por água abaixo. Meu pai era pobre de pé no chão, vestia pastel na rua. Minha mãe trabalhou a vida inteira e anos antes de morrer, perdeu a casa da família, que foi vendida para pagar dívidas. Todos os filhos entraram na faculdade. Eu fiz montes de vestibular e passei em quase todos (menos um). Vestibular é democrático: entra quem estuda. Melhorem o ensino fundamental e médio e não cometam o crime de sucatear a educação e impor a entrada na faculdade de quem tem como passaporte a cor da pele.
RETORNO - Imagens de hoje: 1. Logo provisório deste jornal, de autoria de Juliana Duclós. 2. A escritora Maria Carolina de Jesus: ela é do tempo em que havia o curso primário e ninguém passava por decreto.
MONSTRUOSIDADES PARA ADOLESCENTES
Nicho é a palavra que a publicidade inventou para separar os corpos humanos como se fossem partes de um Frankenstein. Por isso existem tantos cadernos especiais, divididos em públicos alvo diversos, cada um no seu nicho. Isso facilita a captura de anúncios. Desde que os engomadinhos do marketing se tornaram publishers, as redações acabaram. O pseudo-jornalismo que se faz nesse partilhamento de gavetas humanas é aterrorizante. Vamos pegar o pior deles, o que se pretende ser para adolescentes. O caderno Folhateen já nasceu de uma contravenção: substituiu o Folhetim, do Tarso de Castro, que era um jornal alternativo dentro do jornalão, ou seja, criava uma janela de liberdade na grande empresa, o que, naturalmente, jamais se repetiria.
Há outra contravenção na origem do nome. Enquanto o nome encontrado por Nelson Merlin no dicionário, e que batizou mais esse jornal do Tarso, era um primor de brasilidade (essa coisa fora da moda, depois que partilharam o país em mil pedaços para que sua soberania fosse engolida), o que vamos abordar agora usa palavra estrangeira que se tornou lugar comum na publicidade, território anti-Brasil por excelência. Mas tudo isso não tem importância, é ranço de quem não se conforma com o fim do Brasil Soberano, essa idéia cada vez mais distante. O que pega é, digamos, o conteúdo.
Nem sei por onde começar. Nas páginas centrais sobre a banda Kiss, o editor do caderno expulsa os leitores que não forem fãs dos músicos. Ou seja, dentro do nicho teen, o nicho Kiss. No segundo parágrafo ele celebra o fato de que o texto está agora apenas entre os kissmaníacos. É brutal. Ele expulsa os leitores que querem saber do que trata a matéria e acha que isso pega, que as pessoas realmente vão deixar de ler porque ele mandou! Mas é um desplante sem igual. Logo depois de mandar os leitores ler a matéria sobre a série Lost, ele diz que a biografia é "um dos melhores livros de todos os tempos". A idiotia ágrafa, se ficasse limitada ao ego dos imbecis que a detém, não fariam tanto estrago. Um dos melhores livros de todos os tempos é dose para leão. Essa maravilha de livro destaca o quê? A ambição dos caras da banda mais sem vergonha de toda a história do rock, segundo a matéria. Esse repasse de valores cretinos para os leitores só não é um escândalo absoluto porque, acredito, quem pega o caderno para ler deve achar uma baboseira sem fim.
Na mesma edição, de 13 de novembro, mais duas páginas, uma para o Zé do Caixão, e outra para um festival chamado de Halloween do rock. Macabra é a palavra chave usada nas, digamos, reportagens. A dose de baixaria vai fundo, usando expressões como "não é para menos" e "diga-se de passagem". Ao longo do caderno lemos coisas como "por cada" e outras preciosidades. Na matéria sobre a soberba rapper que mudou o mundo da música para sempre, e que é uma contraventora, segundo o texto, que comete crimes culturais celebrados também com alegria no caderno, há duas vezes a palavra esperta. O que seria a poesia esperta que ela faz? Não tenho a menor idéia. Sem dúvida é para diferenciar da poesia trouxa, seja isso o que for. E numa coluna de conselhos e auto-ajuda sobre sexo e saúde, o tema é um vírus causador de verrugas na região genital e outras cositas más. Quer dizer, o jornalismo ligeiro abordando assuntos graves.
A capa da edição tem a seguinte chamada: Vestibular, tô fora! É sintomático: desistir de entrar na faculdade no momento certo (logo depois de terminar o segundo grau) para fazer outras coisas, é o típico conselho para o desvio de rota. A chance que uma criatura nascida no Brasil tem de sair da sua barbárie é entrar numa faculdade de qualidade, mesmo com tantos problemas que o terceiro grau apresenta hoje. Dar força para se mandar do compromisso é espichar a adolescência. São os teen forever, que adiam a idade adulta.
Tudo isso tem uma fonte: o sucateamento da educação promovido pela ditadura a partir do acordo MEC Usaid, que destruiu a educação humanista e colocou no seu lugar essa tralha de porcarias voltadas para o mercado. Hoje é possível fazer faculdade de Marketing de Hotelaria Voltada Para a Terceira Idade, mas tem gente escrevendo conhesço, assim mesmo, com s antes do cedilha. Eta nós.
RETORNO - Imagem de hoje: foto de Helcio Toth. A Terceira Idade é o adolescente de ontem.
19 de novembro de 2006
TRÊS LEIS DO CINEMA
Existem três leis do cinema americano em vigor. A primeira é antiga: todo filme é a história da relação entre dois homens. Sejam dois irmãos, dois amigos, pai e filho, mocinho e bandido, moço e velho, sempre existe essa ligação. Até mesmo em comédia romântica isso costuma existir: o herói tem sempre um bobão que o acompanha e torce para o namoro dar certo ou então luta contra ele. A segunda lei é mais recente, mas nem tanto: é obrigatória a presença da bandeira americana em pelo menos uma cena do filme. Vimos isso o tempo inteiro. Representa a hegemonia da América no mundo todo (quando o filme se passa no estrangeiro, eles dão um jeito de aparecer o consulado ou embaixada com o tal pano estrelado). A bandeira americana flutua sobre personagens, está em cantos, no alto, nos mastros, nas festas, sempre em algum lugar. O planeta é deles, alguma dúvida? E a terceira lei, mais recente, é: sempre haverá uma cena do mijo. Não tem como escapar: em qualquer momento do filme, alguém mija. Normalmente para confabular ou matar. Tem sangue demais nos banheiros de Hollywood. Vamos esmiuçar as três leis.
PRIMEIRA - Batman e Robin (exemplo clássico), Tango e Cash (dois policiais que se amam), Zorro e Tonto (no faoreste, então é brincadeira), Danny Glover e Mel Gibson (quanto desespero nesse caso dilacerado da série Máquina Mortífera): a relação entre dois caras domina a cultura americana. O herói entra no bar e sai uma relâmpago dos olhos: Henry Fonda e Victor Macture em My Darling Clementine é o exemplo mais explícito. John Wayne é uma sucessão de duplas masculinas que se adoram/odeiam. Essa abordagem sobrevive até hoje. Houve até intensificação disso: segundo Gore Vidal, Stephen Boyd e Charlton Heston encarnaram em Ben-Hur personagens que se desejavam ardentemente. Normalmente, a ligação entre dois é apresentada como camaradagem de guerra (quando tudo é permitido), ligação desde a infância, parceria em função de um objetivo (como Nick Nolte e Eddie Murphy em 48 Horas). Mas é sempre entre dois caras. A mulher ocupa, na maioria dos filmes, lugar coadjuvante. Em Além da linha vermelha (1998) de Terrence Mallick, a dupla central é protagonizada por Sean Penn e James Caviezel. O filme todo gira em torno dessa relação, complicada, profunda, emocionada. Mulher só aparece de verdade em carta (em sonho e lembrança também, mas na real só por meio de uma carta), dando o fora num soldado no front. É muita bandeira!
SEGUNDA - Pode apostar: desde o primeiro instante ou ao longo do filme ou em algum lugar nele, aparece a bandeira americana. Eles não vivem sem seu símbolo do qual tanto se orgulham. As bandeiras estrangeiras jamais aparecem, a não ser para representar a vilania. Tem filme em que dúzias de bandeiras estreladas afogam o visual como a dizer: vocês estão condenados a nos adorar! Deve ser uma imposição: nenhum filme americano pode prescindir da bandeira. Isso significa o seguinte: não há liberdade de expressão na América, já que o Império não pode ser contestado, não existe arte americana fora dos padrões da nacionalidade. Filme de migrante tem um único foco: como ele se torna americano. Em algum momento ele vai jurar a bandeira. Assim se fazem as cabeças do mundo, que busca arte e encontra ideologia. O mais grave é que os artistas envolvidos jamais admitem que estejam fazendo algo a favor do domínio imperial. Eles vivem falando em fun. Essa é uma palavra recorrente: tudo é fun, como se uma indústria que atinge o mundo todo fosse pura perda de tempo e entretenimento. Cinema faz parte da guerra. Fun o cacete. É tudo guerra.
TERCEIRA - É batata. O encontro é no mictório. Aí um fica ao lado do outro e se avaliam. Depois sacodem. E ficam conversando. Teve filme que uma investigadora foi atrás do chefe no banheiro. O sujeito achava que ia se livrar da mulher e entrou no recinto sagrado. Dançou. A inspetora continuou conversando e nem deu bola para o sacudir frenético. Por que tem sempre a cena do mijo (em TODOS os filmes de dez anos para cá, não estou exagerando)? Para dizer que o Código Hayes (que impunha a cama separada para casal) acabou? Não precisava insistir tanto. Já sabemos: a humanidade mija. Agora parem com isso. Por que isso incomoda? Porque não dá para ver tanto filme com tanta urina. E por que continuam a fazer (será inconsciente)? Porque ninguém reclama. Vai continuar. Haja.
18 de novembro de 2006
OS PEQUENOS PODERES
Está virando lugar comum: presos numa armadilha do trânsito, personagens de filmes de ação dão uma ré poderosa, que dribla os perseguidores. Representa o que já existe na prática. Dar ré significa ter pleno domínio dos movimentos. Você vai por uma rua tranqüila e de repente alguém sai da garagem dando ré. O carro vai até o outro lado da rua e fica em diagonal, impedindo a passagem, sem ter dado nenhum aviso de que faria isso. Depois, lentamente, vai em frente. Dar ré faz parte da imposição das presenças. E faz barulho, pois precisa de muito torque, ou empuxe (nunca sei essas palavras mecânicas) para acontecer. Nem precisa olhar para trás, como se fazia antigamente. Simplesmente as pessoas dão ré sem olhar a quem, pois elas são as chamadas poderosas, que nada devem a ninguém. Chamam a atenção, decidem que elas têm a preferência e também estão no avesso do fluxo, o que as diferencia do resto. Ser cuidadoso na ré está fora da moda. Confunde-se hoje gentileza com fraqueza. Se desconfiam que alguém está pedindo licença para tomar posição correta dando ré, esse é o momento em que se costuma colocar o carro em cima, impedindo a manobra. Implicância? Pode ser. Mas esses detalhes incomodam a vida diária.
FILA - O verdadeiro poder está oculto e não disponível para a grande maioria das pessoas. Então o poder é outorgado para algumas insignificâncias. Faz parte da manipulação. Fizeram uma lista dos gays mais poderosos: lá tem cabeleireiro, promoter, autor de novela, intelectual. Mas nenhum político, nenhum dono portentoso de muita grana. É preciso ocultar o verdadeiro poder e encher de farofa o olhar do público, que assim fica achando que pessoas sem importância (mas com notoriedade, o que é bem diferente) possuem poderes fora do circuito comum. Vai ver são, no fundo, apenas gente que encontraram um caminho para ganhar dinheiro fora do rema-rema cotidiano, esse que nos envolve na busca da sobrevivência e que nos custa a vida. Vemos no noticiário que mais uma poderosa (garotas magérrimas em busca de um pé de meia) morreu de fome. Chovem matérias sobre a importância dos cuidados com a alimentação, mas não há reportagem alguma sobre os verdadeiros culpados, os donos da indústria dessa moda que ninguém usa e que só funciona na passarela. Sabemos também que playboys milionários (há os pobres) colocam as garotas na fila para suas conquistas. É o mercado do prestígio sexual: o marmanjo precisa de uma garota só pele e osso para dizer que é um comedor.
ANÚNCIOS - Vejo Mulheres Perfeitas (2004), dirigido por Frank Oz com roteiro de Paul Rudnick, baseado em livro de Ira Levin (romance já filmado em 1975). É sobre as mulheres poderosas, essas que aparecem sempre na mídia na eterna pauta "as mulheres não são mais as mesmas". Faz uma contraposição entre o feminismo bem sucedido à velha imagem das donas de casa americanas, aquelas que só existiram na publicidade. É um filme sobre poder. Os homens não querem fazer o papel de mulherzinhas e transformam as esposas em robôs (algumas funcionam como caixa rápida, além de alcançar a cerveja e o uísque). A luta é entre o poder conquistado pelo feminismo e o papel subalterno que o tempo teria engolido (a surra que o mulherio leva em casa hoje, segundo as estatísticas, desmente qualquer avanço nesse sentido). O certo é que aquelas mulheres não existiram, a não ser nos anúncios. Vejo pela geração da minha mãe. Mulheres corajosas, com dupla jornada de trabalho, criando inúmeros filhos, segurando a barra emocional da família. Os descasamentos, tão comuns no noticiário de hoje, já existiam há tempos. Não há nada de novo sob o sol. O que há é a manipulação da percepção e muita vaidade, fundada num evolucionismo equivocado. Quando descobrem mulheres normais de antigamente, que tinham tanta personalidade como as de hoje, diz-se que elas estavam à frente do seu tempo. Ninguém está à frente do seu tempo. Pois o tempo é cíclico, como sabiam os povos antigos, ditos primitivos.
PERSONA - A verdade é que é preciso desvestir a arrogância dos "novos" tempos, a partir dos anos 60. Criou-se uma mitologia terrível sobre pessoas e sociedades. O pior é que não existem dúvidas. Todos acreditam piamente que as mulheres ficavam na cozinha e hoje não. Tudo é relativo e a diversidade humana existe em qualquer geração. O imaginário é que precisa se adaptar ao que a realidade impõe. Mas o que vemos é o falso poder que se manifesta nos pequenos acontecimentos. É preciso desmascarar os verdadeiros poderes, os que permitem nossa vã esperança de que somos independentes e livres. Somos escravos e a luta pela libertação não se faz com caricaturas ou preconceitos.
RETORNO - Imagem de hoje: Glenn Close (em destaque, no centro da foto) ensinando aeróbica para as esposas-robôs. Ela está ótima no filme "Mulheres Perfeitas", que tem também no elenco Nicole Kidman, Bete Midler e Matthew Broderick.
16 de novembro de 2006
HORÁRIO DE VERÃO
Nei Duclós
Mal desponta o sol e já são três da tarde. Os bancos fecham antes de você acordar e sempre dá uma vontade danada de almoçar aí pela meia noite. No fim do expediente, ainda é de manhã. As noites, com sol de rachar, são intermináveis e dá para jogar um torneio completo com dez times de futebol antes do telejornal. Nós já estávamos meio desnorteados com os horários políticos dos dois turnos, que driblou o momento certo dos programas de TV e agora, com o horário de verão, acabamos vendo o Corujão na sessão da tarde. Normal, dizem. Mas no fundo somos vítimas do fuso horário sem viajar para o Exterior.
A situação é tão complicada que, se alguém pegar um avião para o Mato Grosso (em época fora da operação padrão), acaba chegando antes de partir. É possível então avisar a si mesmo que chegou bem antes de entrar na lata voadora, o que é uma grande vantagem para quem tem pânico de decolar. Cheguei bem, posso embarcar. Em tempos normais, já existem duas horas de defasagem e com a nova medida, ao descer no cerrado a cabeça roda como se chegasse na Coréia. Por estar mareado, o sono vem três horas antes do habitual e ao despertar a tendência é pedir café da manhã na boate mais próxima.
Tem gente que adora horário de verão porque assim pode sair à noite com mais segurança, pois é de dia. Os bares se enchem e os garçons servem leite com bolo inglês. Caipirinha? É muito cedo para beber álcool. Contente-se com teen sabor tangerina. Só depois que o sol se por é que pode pedir cerveja. A Happy Hour, desse jeito, acaba virando festa de aniversário da primeira infância. Sair cansado do trabalho para esticar com os amigos tem um contratempo: o ambiente está cheio de balões e brigadeiros.
No fundo querem, por medida de segurança, eliminar a noite, território improvável onde é possível ressuscitar um samba canção. A escuridão favorece o crime, como o namoro à antiga, entre gêneros complementares, com pedidos de casamento, quando o sujeito de joelhos fica em frente a um vestido grená. De dia, quando o horário de verão determina o sol a pino o tempo todo, é possível ver que tudo funciona sem transgressões e as pessoas mostram um ar de confiança no país e no futuro.
O horário de verão é para justificar que algo muda no ano que jamais começa. Festas, Carnaval, Páscoa, eleições, pronto, o ano finda. Ué, já acabou? Não, dizem os espertinhos. Ainda tem o horário de verão. Fica a impressão de que a rotina foi para o espaço, o que é muito bom, pois desde que o mundo se tornou mais moderno, é preciso exibir um novo visual, um novo emprego, uma nova namorada. Malhar nas academias sempre abertas leva à felicidade porque o dia de trabalho sumiu com o horário que devora os minutos como se fossem batatas fritas. Todos ficam disponíveis para dizer "com certeza". E exibem aquele ar de gracejo contra os outros, que estão sempre defasados, que jamais se acostumam à novidade do horário de verão. Já fechou, seu idiota. Chegaste depois da reunião, seu perdedor. Perdeste a confraternização, animal.
O mais impressionante é que no horário de verão existem duas meia noite. Uma às onze horas, que é o horário normal, e outra à uma da manhã, em pleno vigor do horário de verão. Comemora-se o ano seguinte quando estamos no anterior. Depois comemoramos quando todo mundo já está cansado do ano velho. Já era, dizem. Vamos esperar o carnaval.
RETORNO - Imagem de hoje: a Sarça Ardente no Pampa, segundo Anderson Petroceli.
COMO RESOLVER PROBLEMAS
A garota é assassinada pela indústria pedófila da moda, a que reduz o corpo das meninas a dimensões trágicas, para evidenciar sua fragilidade e assim representar o corpo humano totalmente à mercê da ditadura do dinheiro. Se sentia gorda com 46 quilos. Tinha 40 quando morreu. A culpa é de quem? Da internet, segundo estudo de uma ONG (sempre elas), que detectou uma série de sites e blogs de garotas entre 13 e 17 anos que encaram a anorexia como algo normal. É assim que se detectam problemas para resolvê-los. Basta censurar a internet e tudo ficará bem. No jogo do Brasil contra a Suíça, Galvão anuncia a participação dos internautas e aposta qualquer dinheiro (as palavras são dele) que a pergunta é sobre o quadrado mágico. Ele coloca a internet embaixo do braço, no seu devido lugar, o de mídia subalterna ao grande monopólio. Antes era todo o Brasil ligado na coisa, agora é todo o mundo, segundo o Presença Hegemônica das Transmissões Esportivas. É assim que se resolve tudo: a culpa é da grande rede de computadores, o único lugar realmente democrático que existe. Até quando?
GANGORRA - Há um pânico generalizado na mídia com a perda de leitores e espectadores. A culpa, claro, é da internet, que rouba preciosas horas dos cidadãos, que preferem ser protagonistas do que escravos da publicidade nos programas audiovisuais e nas matérias impressas. Que importância tem se o Michel Temer se insurgiu com o Lula e o PMDB está negociando alto sua adesão ao novo governo? Isso dá bocejo desde a primeira sílaba. Como costumam mentir o tempo todo, o que vemos são contradições, pois a gangorra do mal se reveza em análises opostas, em perspectivas que se anulam, em profecias furadas, em análises pífias. E a cara dos colunistas de política e economia, como se acreditassem ser formadores de opinião? Ninguém faz a cabeça de ninguém. As pessoas pensam por conta própria e a prova são os milhões de espaços virtuais criados diariamente. Ninguém precisa do cronista ou do lúcido analista ou blogueiro cada vez mais oficial. O que existe é tédio e revolta.
RECEITAS - Por que estão preocupados tanto com gordura e magreza? Todo santo dia tem gente falando nisso. Por que não criam políticas públicas para a alimentação, em vez de entregar tudo na mão dos piratas, que deitam e rolam nas distribuições, preços, produtos? Você quer algo natural? Pague muito caro. Para perder peso é preciso ter dinheiro. Pobre engorda. Mas isso ninguém fala. É como se todos os males fossem culpa da população, que está completamente presa ao que decidem por ela. Importamos trigo, consumido pela população, e exportamos soja para os porcos da Europa e Ásia. Vejo um caminhão natureba: estão ricos, vendem verdura sem agrotóxico. Pois deveriam proibir veneno em todo o território nacional e deixar que a população plante e venda alimento sem pagar imposto. Mas nisso nem se fala. O importante é mostrar receitas, balanças etc. E ainda ter de ouvir apresentadoras vacas aconselhando o povo como se fossem a própria Sinhá do tempo colonial.
CABIDE - Osso, pele e gordura (sim , as magérrimas são pura gordura) servem de cabide para roupas exóticas, mas o principal objetivo é mostrar como as mulheres podem ser desfrutáveis na passarela, para encanto dos velhos corocas que perderam a tesão e tentam recuperá-la olhando criaturas indefesas (que são chamadas, claro, de poderosas). Vi uma supertopplusmodel se fantasiando de cocar e pena num anúncio e fazendo gesto de nativa hispânica indígena. É triste, lamentável. Ninguém reclama.
RETORNO - Imagem de hoje: Scarlet Johansen em "Canção de amor para Bob Long" (2004). Uma atriz de verdade, dona do seu corpo, muito longe da obsessiva magreza estúpida das manequins. A propósito, vi Gisele Bünchen num filme fazendo papel de bandida brasileira. É de explodir a paciência.
14 de novembro de 2006
FICÇÃO, O PONTO DA MEMÓRIA
EXTRA - Na edição da revista Caras deste mês, na coluna Etimologia, do escritor Deonísio da Silva, saiu o seguinte texto assinado por este estupendo cronista e jornalista de primeira: "Refúgio: do latim refugium, refúgio, asilo, proteção, guarida. De acordo com a etimologia, quem busca refúgio está fugindo, pois o vocábulo radica-se em fugire, fugir. E este é o caso dos milhões de refugiados que hoje abandonam seus países pelos mais diversos motivos e buscam abrigo em outros, sendo as guerras os grandes motivos de maciços deslocamentos em todo o mundo, mas principalmente na Europa, na Ásia e na África. O escritor gaúcho Nei Duclós (56) dá, entretanto, à palavra refúgio um sentido mais ameno em seu livro O Refúgio do Príncipe: Histórias Sopradas pelo Vento (editora Empreendedor). Ao identificar, em Florianópolis, o lugar adequado para viver em paz, diz: "Que o nosso refúgio não sejam as paredes altas, mas a confiança nos outros". O livro é um verdadeiro hino de louvor à capital catarinense, apesar de várias de suas crônicas registrarem momentos adversos na história da cidade, como o triste episódio de 1979, quando o presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999) quase se atracou com estudantes que protestavam contra uma homenagem ao marechal Floriano Peixoto (1839-1895)". Mestre Deonísio deu as caras. E o emocionado autor agradece. A seguir, a edição de hoje.
TEMPO - Memória é o que você lembra de maneira nítida e inequívoca de um fato passado. Uma criança ao sol, seus pés descalços sobre o pedregulho, um pequeno vapor cruzando o rio, um adeus na plataforma do trem. Ficção é quando você escolhe as palavras para resgatar esse fato. Não tem escapatória: na hora de contar, é a sua versão que domina, farol em meio à neblina do Tempo. E o acontecimento, por ter sumido, se esvanecido logo depois de acontecer, ficará sempre inacessível. Ficção, nesse caso, não é mentir, é imaginar o que realmente aconteceu. Há histórias escritas que se aproximam dos fatos, tanto, que a tua versão se sintoniza com a versão de muitos outros. Outras que alçam vôo e causam espanto aos que conhecem o que chamam de "verdadeira história". O segredo é fazer com que a ficção tenha vida própria e se debruce sobre a memória como quem tem a chave de um tesouro. Todos têm direito a dizer como foi. A narração é livre, como um potro criado fora do curral. É assim que memória e literatura se abraçam para costurar as abas soltas do tempo.
RESGATE - A História, ciência humana com inúmeras metodologias, é diferente da ficção, mas não muito. O historiador pesquisa o fato com o auxílio da memória pessoal e coletiva e compõe o texto rigoroso de resgate e análise dos fatos. O historiador cai na mesma arapuca do escritor: ele não tem nas mãos os fatos que se esvaíram, mesmo que conte com documentos, imagens, vídeos. O que ele possui são representações dos fatos, versões em forma de depoimentos, flagrantes, memórias. Como as palavras são traiçoeiras, um historiador não conta histórias, mas produz História, o que é bem diferente. O Historiador não é um ficcionista, embora muita gente acredite que é, e outros até conseguiram provar isso, como Hayden White, americano, autor de Trópicos do Discurso. A ciência exige que a argumentação seja convincente e faça justiça aos fatos. Não há, como costumam dizer os telejornais, testemunhas oculares da História. Você testemunha um fato, você pode ser o protagonista de um evento resgatado pela memória. História é outra coisa. Os protagonistas são representações e os eventos são encadeados dentro de uma lógica científica, jamais dentro de uma lógica espontânea.
ANTOLOGIA - Vamos pegar alguns exemplos do livro Causoseversos - nos confins do Continente de São Pedro, antologia organizada pela escritora Vera Ione Molina, presidente da Academia Uruguaianense de Letras, que voltou a funcionar na atual gestão do prefeito Sanchotene Felice e do secretário de cultura, Miguel Ramos. São muitos autores e é preciso selecionar alguns para efeitos desta edição do Diário da Fonte. Vamos começar com As praças desaparecidas contam a História, um ensaio de Antonio Nélcis Moura. É um enfoque criativo, que evidencia a ausência (as praças desaparecidas) para reconstituir a memória urbana e lançar as bases de uma História da cidade por meio das transformações dos espaços públicos, que se adequaram às mudanças políticas e pragmáticas. O texto faz parte da diversidade de rumos que a História tomou depois que os franceses demoliram o edifício de Ranke, o fundador da historiografia moderna, eurocêntrico e macrohistórico. Nélcis Moura usa o sumiço das praças da cidade como sinais, pegadas da trajetória de uma comunidade específica. É uma contribuição e tanto para quem gosta e precisa saber onde vive e o que aconteceu naquela fronteira.
CORTE - Com o texto Uruguaiana 1900, a professora Lucia Silva e Silva nos traz também mais um aspecto revelador da cidade, ao analisar os intendentes municipais na virada do século 19 para o vinte. Semente de um estudo maior, o texto que está nos livro nos enche de curiosidade e se destaca por fazer esse corte de um determinado período, numa pequena cidade. Nessa fração de tempo, ela retira uma série de contribuições ao entendimento da época abordada. Já outros dois textos, o de Genaro Alfano, sobre visitantes ilustres na cidade em tempos idos, e de Maria Josepha Pisacco Motta, que traça um perfil tradicional da fundação e destino da cidade, fazem parte de uma outra linhagem, pois atendem aos princípios mais amplos da História, mesmo que tenham abordado aspectos locais nos seus textos. É a forma de abordagem que faz a diferença. O corte feito por Silva e Nélcis é diferente do zoom de Genaro e Motta. Ambos valem a leitura, neste livro patrocinado pela Prefeitura de Uruguaiana.
ASSOMBRAÇÃO - Mas eu queria chegar é na ficção a partir da memória. É o que acontece, de maneira contundente, nos contos de Daniel Fanti e Fernando Pereira da Silva. Fanti, especialista na história das personagens da cidade, relata um causo de assombração e ao mesmo tempo nos dá um panorama dos costumes do início do século vinte. Seu texto tem o sabor da reconstituição feita com gosto, atenta aos detalhes e que leva o leitor para a vida escassa e precária de pessoas simples do povo às voltas com os mistérios do mundo. Fernando usa um episódio da infância, um jogo de futebol de rua, para mostrar uma grande personagem, Dona Zezé, apaixonada por futeboil e que entra em guerra com a gurizada ao reter uma bola que quebrou a vidraça da sua casa. Fernando, memorialista, amadurece cada vez mais como escritor ao deixar-se levar pela literatura. Seu conto acrescenta um ponto: sua capacidade de narrar de forma competente um episódio que deve rolar pelas conversas dos mais velhos. É uma história comovente, espécie de roteiro seguro de uma humanidade perdida no tempo, os adolescentes de uma época inesquecível, que voltam à tona por meio do talento do escritor.
DOR - Nessa primeira leitura, dois textos se destacam ainda: Desterro, um conto noir de Ricardo Peró Job, que mistura tradição e modernidade na vida de um protagonista assombrado pela idéia do suicídio; e O outro lado da ponte, de Vera Ione Molina, que nos traz um funeral e seus parentescos e a saída para fora do perímetro da cidade, para um limbo situado no país vizinho. São contos fortes, que abordam a dor e o desencanto e por isso mesmo reveladores de escritores exigentes. Voltarei ao tema, com mais autores que estão na antologia, da qual participo com o conto/crônica Quando falta luz, sobre o mergulho que fazemos na varanda, na escuridão, momento em que os vagalumes apontam diante dos nossos olhos.
RETORNO - Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli, o fotógrafo maior da fronteira.
13 de novembro de 2006
O TRIVIAL IMPÕE O CERCO
Compro um remédio e, para não perdê-lo, coloco a caixa no bolso furado do meu velho casaco de naylon, levíssimo e colorido de verde e roxo, o que sempre causa espanto quando uso. É a maneira que tenho de chegar em casa com a compra, pois um bolso de trás, ou algo parecido, acaba despejando o conteúdo em frestas, tapetes de carro, meio de quintal. Na hora de resgatar o bruto para o uso, tenho a maior dificuldade de localizar a presa, pois ela se coloca fora de mão e só existe aquela abertura extra do lado esquerdo, por onde enfiei a encomenda, já que no direito está tudo certo. Fico imaginando que o remédio está me pregando uma peça, ou então é o casaco, que pede aposentadoria, que ri da minha cara. Finalmente alcanço o objetivo e fico pensando se não está na hora de prestar mais atenção às coisas triviais, que fazem a festa a maior parte da nossa vida. O épico, o lírico, o romântico, o eterno são detalhes ínfimos, milissegundos que chegam e somem. O que nos resta é ficar preso nos badulaques do tempo que se esvai. E à mercê da observação ligeira de quem passa.
GUERRA - O tédio é o maior inimigo do fotógrafo de guerra, que ao voltar do front não se acostuma à mesmice das coisas triviais. Quer suar, sofrer, se emocionar, viver a transgressão da vida sem limite. É o que vemos no filme O Resgate de Harrison (Les Fleurs d'Harrison, 2000), uma produção francesa de mais de duas horas, que não passou nos cinemas e está disponível nos dvds. É sobre a guerra na Iugoslávia, que segundo depoimento do ator principal, David Strathairn, não foi ainda abordada de maneira suficiente pela literatura, o cinema, o teatro. Guerra encoberta, que explodiu no nariz do mundo dito civilizado e confundida inicialmente com escaramuças étnicas, revelou-se total e genocida. As cenas do massacre são impressionantes. Mulher de fotógrafo internacional vai em busca do marido e lá conta com a ajuda de outros jornalistas, que a encaminham para o lugar onde ele estaria confinado.
BRODY - Quem engole o filme é Adrien Brody , o grande ator que ganhou o Oscar com O Pianista, de Roman Polanski. Brody surge como um incômodo e aos poucos cresce tremendamente até tomar conta de tudo com sua performance. É sem dúvida um dos maiores atores da atualidade. Ele faz o fotógrafo esnobado pela grande imprensa, um freelance que procura espaço e reconhecimento, que se ressente desse descaso e ataca seus pares mais bem sucedidos. Mas se arrepende e empreende uma viagem rumo à loucura. Dá gosto de ver um ator como Brody, nesse personagem cercado pelo trivial e que procura desesperadamente sua redenção, sua auto-superação. E que, ao desistir de si mesmo, a encontra, apesar do custo que precisa pagar por isso. Nas entrevistas, Andie McDowell fala do grande desgaste que foi o filme, não apenas o físico, mas o emocional, pois todos os dias, durante meses, precisava carregar a emoção da mulher que se recusou a ser viúva.
RUMOS - Se você é fotógrafo profissional, ou se você tem uma atividade que a todo momento aponta para a sua vida, ou o mundo que o cerca, verá que existe uma luta contra o trivial. Você precisa sair dessa, descobrir rumos, desvencilhar-se do que o amarra. Como fica difícil, muitas vezes a droga vem em socorro, para desespero geral. O certo é ter uma atividade diária, artística ou não, mas que lhe carregue desse sentimento de permanência, de costura de instantes aparentemente sem sentido. Nada disso tem a ver com a perda do remédio no casaco, claro. Pois as coisas mais insignificantes também oferecem um charme único quando se revelam assim tão sem propósito. Você pode estar simplesmente brincando junto com o trivial que afasta as amarguras. E isso também é bom. Vai saber, nesta vida cheia de mistérios.
RETORNO - 1. Renato Modernell, escritor de mão cheia e gaúcho de Rio Grande, com muitas décadas de janela paulistana, acerta a mão no seu blog e está postando com freqüência crônicas imperdíveis. Vale a pena ler. 2. Imagem de Hoje: Andie McDowell é fotografada por David Strathairn, numa cena trivial doméstica, véspera da aventura trágica.
11 de novembro de 2006
CONHECIMENTO DE MASSA
É comum esnobar informação dizendo que ela já está absorvida, sabida, passada. É um vício do nosso tempo. Você não informa absolutamente ninguém, todos estão muito bem informados. Cisquei na internet comentários sobre o filme A Corporação (Canadá, 2004), de Jennifer Abbott e Mark Achbar, com roteiro de Joel Bakan e Harold Crooks, e vi que muito texto boceja sobre o já dito e sabido e que o filme não traz grandes novidades. Discordo. É preciso prestar atenção nos contemporâneos, eles têm algo a dizer no meio da floresta de lugares comuns. De longe, parece que não há informação nenhuma. Mas é só aproximar um pouco o olhar para ver o que nos incomoda. Pois o conhecimento alheio nos chateia, e denuncia nossa ignorância. Diz na nossa cara que não sabíamos daquilo, que jamais tínhamos pensado. E o que "A Corporação" nos traz que nem tínhamos adivinhado? Não vou me estender sobre esse longo documentário (está tudo nos sites). O que me interessa é a contribuição que traz para o nosso espanto.
PESSOA - Primeiro, a pesquisa sobre a origem da pessoa jurídica, criada para não ter responsabilidade alguma e que é, no filme, comparada a um psicopata, sem nenhuma responsabilidade. É dito com todas as letras que responsabilidade social é só publicidade. Que a corporação, pessoa jurídica psicopata, não tem nenhuma responsabilidade com o ambiente, por exemplo, só com o lucro e por isso quer ser vista como alguém que se preocupa com os rios e as árvores. Só a seqüência sobre a luta contra a privatização da água na Bolívia dá a dimensão exata do que as corporações pensam sobre o meio ambiente (até água da chuva era proibida de ser coletada, tudo era da empresa estrangeira que comprou os direitos do insumo básico). Um dado incrível é que a pessoa jurídica foi quem mais se beneficiou das leis de proteção às pessoas, criadas nos Estados Unidos logo depois da Guerra Civil (Secessão), para proteger os negros. Quem saiu lucrando foram as corporações, que alegavam ser uma pessoa. Esse é um dado incrível e não merece ser relegado a um déjà vu. Acho que pouca gente sabia.
PUBLICIDADE - Outro impacto foi o envolvimento da IBM no massacre dos judeus na II Guerra. Os cartões perfurados serviram para gerir o fluxo das vítimas, um trabalho feito pela sucursal alemã da corporação. A IBM fez um contrato direto entre Nova York e Berlim, segundo as pesquisas mostradas no documentário. Você sabia? Eu não. A denúncia contra a Monsanto é mais uma informação importante. Segundo denúncias de 1997 (num processo que se arrastou até 2004 pelo menos) a empresona (que parece mandar no Brasil) criou uma coisa para aumentar a produção de leite, o que provocou doença no gado, que foi tratado por antibiótico, que acaba indo para o resultado final, consumido por todo mundo, principalmente crianças. Dois jornalistas da Fox denunciaram, mas foram impedidos de levar ao ar seu programa e acabaram derrotados na justiça. A Europa, que ficou escaldada com a vaca louca, proibiu o produto da Monsanto, e o Canadá, que não é trouxa, também. Mas nos Estados Unidos ele continua sendo usado, contaminando um alimento básico da população. Por que? Porque eles podem. O documentário mostra explicitamente que notícia é tudo aquilo que a publicidade decide o que é notícia, palavras de um executivo da Fox, segundo o documentário. O jornalismo acabou, como cansamos de dizer aqui.
SOLUÇÃO - Há saída para essa ditadura das corporações? O filme diz que há. Que toda a história humana é a derrota de uma tirania, que é substituída por outro regiume, muitas vezes mais ditadura, mas existem mudanças, possibilidade de derrubar o regime. E dá o exemplo de uma empresa poderosa centenária americana da área do petróleo que foi desativada pelos cidadãos armados de meios legais. Não é impossível derrotá-las. E urge acabar com elas, entrando aí toda sorte de pensamento. Os americanos, que dominam o filme, são muito institucionais. Todo o Mal é uma distorção da Grande Nação e do capitalismo ético das origens. Mas esquecem que a literatura marxista faz esse tipo de denúncia há mais de um século. A questão é que o marxismo não é levado em consideração pelo pensamento hegemônico americano (marxismo é confundido com o comunismo da Guerra Fria e portanto é encarado como uma traição, o que é um escândalo teórico). Eles querem achar caminhos por conta própria e nisso se perdem. Enquanto estiverem abraçados à bandeirinha estrelada, estaremos fritos. É preciso noção de que existe o Outro. Não é por nada que a Europa pensa diferente. Marx é europeu.
AVALANCHE - O pacote do filme é composto por dois discos. O segundo é um "ouça mais" dos entrevistados, verdadeiro mergulho em vários assuntos relacionados com o tema. Especialmente o ativismo anti-corporativo e as dificuldades tanto das lutas populares (não existe lei que dê autoridade ao povo nessas questões polêmicas) quanto das investigações feitas por jornalistas (não há lei que impeça a distorção de notícias). As corporações dominam o noticiário e as relações públicas têm a palavra final. É com certo susto e desencanto que os depoimentos reportam campanhas milionárias para desestabilizar as denúncias, pressões de todos os tipos, benefícios no judiciário etc. É um escândalo atrás do outro. Por isso, melhor do que alugar, é comprar e ter em casa para ir seguindo a quantidade de enorme de informações. Passei dois dias inteiros vendo a avalanche e assim mesmo não consegui acompanhar tudo. O mais assustador é que somos moniotorados pela internet por algumas vilãs poderosas. Desconfio que a liberdade na rede está por um fio e esta época, dos anos 90 até talvez a próxima década, será lembrada no futuro como os anos 60 da revolução digital.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: cena do filme "A Corporação", que está nas locadoras e é obrigatório. 2. Fernando Pereira da Silva me envia mensagem sobre minha crônica "Um estranho batizado". O grande memorialista de Uruguaiana diz que adora meus textos sobre a cidade e que faz parte deles, pois a dona Leda, mãe de Fernandinho, era amicíssima de minha mãe Rosa. As duas comentavam tudo o que se passava nas famílias. Esse é o leitor que, de tão próximo, já é personagem.
10 de novembro de 2006
IMPERFEITO É O MAR
Nei Duclós
Imperfeito é o mar
que desova as luas que devora
Que devolve a flor
da compostura
oferecida em tambor
de epifania
Imperfeito é o mar
que resiste ao verão
que se anuncia
e mantém o frio
cinzelado
na armadura
Nesse exílio de mar que é o ano findo
O banho tardio expulsa a espuma
Imperfeito é o mar
que adia a pluma
oferecendo espinho,
a congelar os barcos
e a se livrar
do trigo
Insistimos, nós que enfim nos entregamos
e descobrimos o mar pedindo auxílio
Imperfeito é o mar, extrema criatura
A sucumbir como um golfinho
trocando pirueta por comida
Irmão partido que não se despediu
E que ao nosso lado se socorre
de um poema afogado pela brisa
Vamos peitar o inverno, mar da minha vida
Vamos enfrentar os temporais da fuga
Imperfeito é o mar
que assim me obriga
A dar-lhe a mão
e a ser seu filho
Pois se fosse Deus, onde estaria
minha vontade de bebê-lo até a loucura?
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