28 de setembro de 2020

GÊMEO

 Nei Duclós 


A Primavera, estação das flores

Tem uma irmã gêmea 

Cinza e chuvosa 

Com o mau humor de ventos e frio


Idêntica a mim

Que cultivo uma sombra do que sou

Um sujeito ruim

E pecador


Escolha o bom

Porque o mau eu resolvo

onde estou


Sou meu próprio irmão

Ele é  quem provoca pena  

E conselhos do viver bem

Não perca tempo

Salve quem me esforço ser

Já que o outro

se condena


27 de setembro de 2020

CRESCENTE

 Nei Duclós 


Vi a lua crescente

Nó céu do extremo setembro

Estava no alto, pingente

Nó teto espesso da noite


Lembrei de ti, confidente

Que repartiu bons momentos

E hoje já não alcanço

Quase não vejo, de ausente


Aguardo a fase da cheia

Quando surgires de pronto

Amarela de tão brilhante

Moeda rara de ouro


Falei que és glória do gênero 

Quarto que guarda um tesouro

Teu corpo na cama ardente



26 de setembro de 2020

FELINA

 Nei Duclós 


Fico de tocaia no sentimento 

Qualauer movimento atiro 

Flor do pântano 


Felina arisca

fingindo indiferença


Gasto meu tempo

A lua torce por mim

Depois some

Idêntica a ti 

Luz que vira sombra

E dribla minha atenção 

De sol poente


Estrela que eu capturo

Cadente



25 de setembro de 2020

TONTO

 Nei Duclós 


Não tenho um amor

Desde que partiste

E me deixaste tonto

Sem saber o que fazer da arte

que me ensinaste: 

o poema de amor

meu desvio de  conduta

Pois eu era Maiakovski e virei árcade


Gentil pastora 

Não tenho terra ou gado

Desaprendi de atirar, deixei de ser soldado

Hoje sou inútil burocrata 

Carimbo passaportes sem vocação de viagens


Se vieres de Paris estarei de guarda 

Na entrada de um aeroporto pálido 



SAUDADE

 Nei Duclós 


Sinto saudade, mas nao devia

Ja acostumei sem tua companhia

Nossa conversa sobre Deus e o mundo

Os passeios no barco ou na ferrovia


Pegadas no meio de praças perdidas

Beijos que estalam só de alegria

Tua ansiedade em minha camisa

Minha paixão sob o teu vestido


Teu cabelo no ombro, bandida

Olho de mel, gata em suspiro

Saudade por que? Nao ha motivo

Tua carta não chega, chegará um dia


LOGO CEDO

 Nei Duclós 


Chamam de amor o que sinto cedo

mas é  só celebração por acordar contigo

Dividir  o pão e o café na mesa

Arrumar a cama posta em desassossego


Estivemos a mil a noite toda

e o sol nos cumprimenta com um sorriso


Bom dia então amor

que é  esse o termo


24 de setembro de 2020

ANÔNIMO

 Nei Duclós 


Arrisco o poema torto

Porque o certo desaprendi

Assim fico mais perto

Do que eu vivi 


Na ruptura caio em mim

Instável literatura 

Sem torre de marfim


Anônimo, caminho rente ao luar

Há flores, que esqueço de te dar

Sou urso na piracema

Do teu amor



23 de setembro de 2020

NO POÇO

 Nei Duclós 


Ser expulso do amor,

como um criminoso

Sem saber o motivo


No fundo do poço sou a imagem que evitas

jogando na água tuas prendas de moça,

teus brincos de ouro


Tua voz que me chega como na tortura

quando me afogo sem fim nem começo



21 de setembro de 2020

ALTAR

 Nei Duclós 


É sagrado o chão onde pisas 

Pois a arte exercida por ti

Civiliza

O bruto gesto de quem te admira


No altar da tua obra

A devoção sem nenhum conflito

Nem religião 

Apenas o talento, esse dom

Que transformas em criação 

E alimento


Não sabemos quem és 

Tua liderança vem do espírito 

Unção humana em rosto divino 

Anjo ou mulher  és meu caminho

Sou teu coro de vozes

Sem conflito


Tenho a semente do teu acervo

E por milagre nasce em mim

Este poema



NADO LIVRE

 Nei Duclós 


Não dá pé o amor que ensaiamos

É algo perigoso onde o  corpo afunda

É não volta à tona, fica por isso mesmo


Tentamos bóia, barco ou cais do porto

Mas não é  seguro, sentimos muito


Nado de peito, de costas ou mergulho

É risco e prefiro ser adulto 

Vou secar o mar e deixá-lo  insepulto

Assim nos salvaremos, sem pedido de socorro.


20 de setembro de 2020

BANDA

 Nei Duclós 


O poema é  o biombo onde me escondo

Feito de vidro 

Comigo à mostra

Como display em loja antiga

Canetas tinteiro, discos de vinil, fogareiros


Já falaram para eu fechar 

esse comércio inútil

E me dedicar a uma padaria

Ser motorista de van

a transportar cachorros 


Mas só saio daqui quando for chamado

pelo Tempo, o deus Cronos

Que vai colocar em meu lugar

Um shopping center

A não ser que uma hecatombe, uma pandemia

mude tudo

Sem ninguém se dar conta

Aí haverá choro e ranger de dentes


Minha contribuição para cair de banda

É a poesia



19 de setembro de 2020

ENROSCO

 Nei Duclós 


Cedo despertas, mas não cedes

qualquer margem do teu desejo

Não sou o alvo, sou o canteiro 

Onde exerces tua natureza

De flor a pleno, perdição do ermo


Não me conformo, sinto ciúmes 

E aproximo pedra em vez de húmus 

Falo por ervas que te assediam

Pois não te colho, pétala de sonho 


Não há solução para este enrosco

Dependes de mim, que te acompanha

Não me reconheces, plantação estranha


Eu então me vingo, namoro a Lua

Mulher madura, mas ainda moça 



18 de setembro de 2020

DESFORRA

 Nei Duclós 


Um amor desses eu não jogo fora

Nem preservo na minha memória 

Um amor desses eu vou à forra

Como escravo liberto ou general da Espanha


Penetro  nos redutos de Helena de Tróia 

Roubo o pomo no pomar sagrado

Qual Hércules que o trabalho dobra

Ou Teseu com o fio de Ariadne


Percorri toda a mitologia

Para estocar tua lenda no arquipélago 

Desço do navio com as Amazonas

Venho te tirar do gigante bárbaro


Mas não sou o marco civilizatório 

Apesar das medalhas e vitórias 

Pertence a ti ganhar de toda sombra

Só com teus pés subjugando o herói 


Sou Prometeu em busca do fogo

Que já tinhas, alimentando Zeus

Não desisto de invadir o Olimpo

E te trazer na próxima aurora



LIVRE ARBÍTRIO

 Nei Duclós 


A pandemia entortou as pessoas 

Estragou as gentes 

O que estava em repouso desperta em fúria

Colocou todo mundo em confronto

O diálogo é  o mal entendido

A relação é  a ameaça 

A burrice alcança status de loucura

E a cultura torna-se  obsoleta 

por falar em outra situação 

Que não mais se sustenta


Vivemos sob suspeita

Os ladrões aproveitam

E o tecido que costura as famílias se esgarça


A esperança deu um tempo

A saudação anda armada

O grito no lugar do sussurro

Em vez de amor, raiva


Terá sido a pandemia

Ou somos nós  com a chance de ver o que estava implícito?


Acordo contigo em uma remota vida 

Enquanto o mar parece também ter enlouquecido


Só o que resta somos nós 

Livre arbítrio 

De um Deus que é nosso vizinho

E faz barulho  



17 de setembro de 2020

PARADO

 Nei Duclós 


Parei no tempo

Por descobrir datados

Quem pretendia superá-lo

Revolução em conserva 

Com jargões de lata

confundidos com o ouro da linguagem


Trouxeram livros armados

Para interromper a poesia

Ou colocá-la a seu serviço 

Mas o poema se manteve

como bruta semente


Por isso não pergunte para onde vou

Ou de onde vim

De que luta ou lado

Nasci torto como árvore no pampa

Onde pousam pássaros 

Vindos de todos os quadrantes


Parei no vento



SOBRESSALTO

 Nei Duclós 


Chove pesado na alta madrugada 

Estrondo de tanta água 

Cheiro de terra molhada

Quarto cercado de sombra

Acordo num sobressalto

Esqueço o sonho recente

Confundo pele e a mente

Não devo dizer o que sente

O verso embaixo da terra


Já sabes o que reserva

O próximo passo do tempo

O sol no céu encoberto

O dia impondo mistério 



16 de setembro de 2020

SOBREVIVENTE

 Nei Duclós 


Afasta o passado de mim

Sobrevivente

Que eu viva o presente

Sem lembranças 


Passar a vida em branco

Longe da Terra

Para que nenhuma lágrima 

Me doa



15 de setembro de 2020

PANDORA

 Nei Duclós 


Já escrevi coisas que não entendi de pronto

Só com o tempo amadureci o bastante 

E o verso que era sem sentido se revelou


É assustador, meu pai

Pescar de barco na correnteza

Sob ameaça da Lua

Que promete segurar o sol

Para impor a eterna noite


Queira Deus que os anjos assoprem apenas palavras de amor

E não esses mistérios revoltos

Numa caixa de Pandora


DECISÕES

 Nei Duclós 


A vida são as decisões que tomamos

Todas erradas

Por isso essa velhice braba

Esse afogar na mágoa

Esse remorso amargo

Essa dura memoria

Sal de um tempo torto


Por isso esse amor

Que não acaba


14 de setembro de 2020

VIRTUAL

 Nei Duclós 


Não queres mais  conversa

Transformas meu poema em prosa

E depois fecha a porta para as metáforas


Deste um prazo, foste embora

Amor virtual é  fácil de cortar o laço 

A falta de abraço não dói 

Qualquer coisa dá um  block


Só que o sentimento é presencial

Em qualquer plataforma

E sangra, mesmo sem provas


No fim o corpo é  uma ilusão 

Flor da minha alma

Levado de roldão

Na inclemência da tela



13 de setembro de 2020

NA MARGEM

 Nei Duclós 


Despojar-se

Mas sem testemunhas

Nem mesmo tu

Olhando-se no espelho


Perder o hábito de expor-se

acumulando memórias 

Viver fora do eixo

Na margem extrema


Ser visto só por Deus é  um teste

Normalmente reprovamos

Pois o divino olhar, que é  criador

vira-se para outras coisas

E o ego não sabe o que fazer

com os despojos

O que o mar devolve

junto com as flores 



12 de setembro de 2020

GRAVURA

 Nei Duclós 


Um olho é curioso

O outro assustado

No pacote do rosto

Se salva o sorriso

Ninguém nota a extrema

Diversidade 

Que emites na tela

Com tanta verdade


Mas eu me aproximo 

Da tua imagem

Aumento um pouco

Para ver os detalhes

Tão bela e anônima 

Perfil sem  alarde


Só que eu gravei

Todo o conjunto

No meu sonho

Sem nenhuma

piedade



O DESPERTAR

 Nei Duclós 


Nasceu num tempo em que todos os vivos estavam mortos

Trouxe motivos para continuarmos existindo


Se foi seguido não sabemos

Mas acredito que ainda estamos aqui

Graças a suas profecias

Que talvez nem se realizem

Mas são animações que despertam vulcões extintos


Não nos revelou o sentido da vida

Porque tinha limites

Sua força vinha de algum lugar aqui perto

O infinito


Depois voou

Levando junto a dor que acabou comigo



RETRATO

 Nei Duclós 


Aprendo a conviver com uma versão piorada de mim

Hoje sou minha banda cover

A pintura falsa do quadro que fui


O original está perdido no tempo

Em fotos que também são versões do que existia


Seria eu mesmo o que lembro

E define minha identidade para quem não me vê há tempos?


Ou a verdade é  esse retrato mutante que não lamenta o passado

E enxerga pouco, ouve só de um lado

Mas te espera na estação abandonada

Com o último ramo de flor esquecido pela eternidade?


PÁSSAROS

 Nei Duclós 


As semanas passam

Como os bandos de pássaros

No céu da minha infância 

Alinhados no mesmo ritmo

Ainda estarão voando

No firmamento da memória?


Vão-se os sentimentos

Deixando um vazio de nuvem e de vento

Fica este eterno presente

Que o tempo embrulha

a cada inverno


Cruzo a existencia

Imóvel diante de tanto assombro


A vida é o beijo

que a morte não alcança 

E o desespero é  um peixe se debatendo 

Na areia empurrada pela onda

De um mar que namora a lua

No fim do mundo


10 de setembro de 2020

THE POST: QUANDO O JORNALISMO ATINGE O OSSO

 NEI DUCLÔS 


Tudo conspira contra a publicação do relatório McNamara sobre o Vietnã pelo jornal da capital, o Washington Post. Primeiro, o massacre da concorrência, pois o furo era do New York Times. Depois, a situação financeira delicada do jornal, que precisou abrir o capital sem abrir mão da propriedade familiar.  A viúva (Merryl Streep, monstra) não tinha credibilidade suficiente para convencer os investidores.


Havia ainda o medo da prisão,  pois publicar os papéis do Pentágono que foram proibidos de serem divulgados pela Justiça de Nixon depois da bomba revelada pelo NYT. É ainda outros empecilhos como o envolvimento tanto da dona do WP quanto seu diretor de redação (Tom  Hanks, perfeito como sempre) com os poderes máximos da República. Sem  falar nas notícias superficiais como casamento da filha do Presidente,  entre outras bijouterias. Havia má vontade da Casa Branca contra i jornal que o criticava mas ainda não tinha influência nacional.


O que faz o cineasta (Steve Spielberg, gênio) para que seu filme reporte a trajetória do jornalismo para atingir o osso da notícia, sua essência, sua razão de ser? Faz cinema

 Ou seja  concentra a ação no andar dos protagonistas. Hanks sai abruptamente das reuniões e anda apressado pela vasta redação em polvorosa. Merryl expressa a elegância e a fragilidade da sua posição de herdeira de um Império prestes a perder tudo com seus passos lentos mas decididos.  O jornalista (Bob Odenkirk, de Better call Saul, ótimo) que acessa a fonte, corre para um telefone público ou tenta driblar em meio as mesas o advogado que quer impedir a publicação. O foca quase é atropelado quando cruza a rua correndo para espionar o NYT.


Mais  cinema: o início do filme é Soldado Ryan e Apocalipse Now. A busca da informação é Todos os homens do Presidente. O clima e o desfeccho e puro filme clássico noir.


Há mais: o centro da trama e a coragem da mulher assediada que estava indecisa. Ela descobriu que deveria optar pelo jornalismo e não pelas amizades com os políticos. Para isso deveriaassumir a empresa herdada e seus riscos e respeitar a lei da liberdade de expressão,  ou seja, a opinião pública e as decisões da redação. O dono de um jornal só manda se a liberdade for soberana. Sua saída vitoriosa descendo as escadas da Suprema Corte, filmada em meio a multidão de mulheres, é uma cena tocante desta obra prima ( não por ser perfeita mas por tocar no ponto exato da democracia) a cargo de Steve, Merryl, Tom, Bob e todos os envolvidos. É  um privilégio sermos seus contemporâneos.


Nei Duclós

9 de setembro de 2020

ESCOLHA

 Nei Duclós 


Há palavras que melhor definem 

A ponte que liga as criaturas

São mais sinceras e limpam equívocos

Mesmo que sejam estranhas à primeira vista

E acabem rompendo o vínculo

pelo mal entendido 


Por exemplo: amada é melhor que amiga

Aduba o que a outra esteriliza

Confessar amizade é pouco para almas aflitas

Significa afastar-se

da chance de salvar o dia


Enquanto isso, sugerir amor mesmo sem namoro 

É de natureza mais íntima

E empresta graça ao desconforto

(quando evitamos o que está pedindo)


Ris das minhas especulações insones,

desconhecida

Não comente, ou estaremos fritos 



VESTES

 Nei Duclós 


Como haverá desejo se estiverem sempre nus?

perguntou o anjo que inventou a roupa

Atração é quando alguém se veste

E sugere a diferença que permanece oculta


O que é  selvagem não basta ao bote

É preciso sedução acima da besta

Uma renda rasgada, a falta de um botão 

Uma curva criada pela impostura da saia


E há o batom, a pele tatuada

Cabelo nos ombros e soutien

E o mais importante, a palavra


Não falo do gemido ou do êxtase silábico

Mas da sintaxe ou da gramática

Sujeita, predicada e verbo

Ação devotada em poema arcádico  


Graças, mulher tão bela

Graças ao poeta

Vestido aos pés  da tua estrela 


TUS OJOS

 Nei Duclós 


Tus ojos tienen el frescor de las mañanas

Tu cuerpo es árbol, agua de montaña

Soy tu pájaro que sube hasta las nubes

Dices amor e el mundo se transforma

Es la primavera muy temprana



ANOTAÇÕES

 Nei Duclós 


Os encontros só incluem despedidas

Chegamos tarde para os  cumprimentos

Minutos que sobram não são de alegria

Viram as costas evitando o início 


Talvez seja por erros cometidos

Quando  havia tempo antes da pandemia

Não estávamos atentos, deixamos para outro dia

E agora que precisamos

a praça está vazia.


Sentas no banco do inverno medonho

As árvores gostariam de fugir

Mas ficam te fazendo companhia 


Até os cães passam ao largo 

Os automóveis nem sequer buzinam

Não há reuniões na cidade morta

Bebes a solidão de um vinho antigo


Alguém te dá a mão, anjo adventicio 

Passa anotações que fizeste na vida

Lá está teu coração que tinhas perdido


8 de setembro de 2020

ADVERTÊNCIA

 Nei Duclós 


Empresto a musa que não me pertence

Porque mulher é dona de si mesma

Menos do sonho da sua presença

Onde ela anda conforme combinamos


Empresto mas devolva pois eu vi primeiro

Tenho precedência com meu jeito insano

Acho que apito em jugo de princesa

Sou só a plateia em outro planeta


Não ache que pode dizer besteira

Ela não existe para ouvir teus chistes

Sua arte é a beleza aliada ao talento

Personagem de deusa de nobre inteligência 


Conforme-se em admirar em papel idêntico 

Ao que desempenho nessa corrente

Ela nos civiliza, brutos arrogantes

Homens sem carisma e de coração ardente


6 de setembro de 2020

LEITURA

 Nei Duclós 


O pensamento como arquitetura do poema

Sustentado pela palavra e seu sistema

Interna mas como chuva lá  fora

Que provoca o fogo na lareira


Achei que tua leitura fosse amena

Porque gostas das luzes indiretas

Sobre papéis ainda em uso


Mas é só abuso do teu conhecimento

Procuras nos livros o que te sobra

De pura inteligência, ser feminina

não vem ao caso

A não ser quando te preservas

Fingindo ser burra

Para que fiquem em paz com suas loucuras

Enquanto mergulhars na literatura

Nos ensaios e todo tipo de cultura


Para depois me ensinar na minha preguiça 

Pois nada leio, só faço poesia

Para te encantar quando fechas o livro


CINEMA Ê...


Nei Duclôs 


Quando fingem que não estão sendo filmados


Quando denunciam a presença da câmara achando que isso é a realidade


Quando a imagem nasce da palavra e se desprende da sua origem ao entrar em movimento


O que fica na mente depois que o filme acaba


Quando o ator assume o personagem sem fingir 


Quando vamos ao cinema


Quando é diferente do texto sobre cinema


Quando tem um único foco, o próprio cinema


Quando a disposição do cenário em função da narrativa é confundida com reconstituição de época 


Quando não é teatro, portanto não tem pano de fundo. Tudo o que aparece na tela é  o cinema


Quando tentam, em vão, defini-lo


5 de setembro de 2020

NO AEROPORTO

 Nei Duclós 


Quando nos reencontramos

Não sabia o que fazer com as mãos 

Se continuavam ocupadas com as malas

Se eu devia te pegar de alguma forma

Tocando teu braço ou rosto

Ou se deveria procurar a passagem do avião 

Que nos levaria para o mesmo destino

Apesar da falta  de combinação 


Foi só coincidência

E quando enfim o abraço nos grudou

No aeroporto pasmo diante dos amantes rompidos

De repente redescobrimos o amor

Cão farejador que se recusa a ocupar o bagageiro

E senta conosco a lamber-nos a cara machucada pela solidão 


VERGONHA

 Nei Duclós 


Sentes vergonha mas não devia

Fecho meus olhos talvez ajude

Assim ficas livre e eu me poupo

De ver tua carinha se desmanchando

Quando bate o sino


Gosta mas nega a mulherzinha

Jogo de presa e predador faminto

Tens um nome a zelar, uma postura

E receias que eu diga aos quatro ventos


Eu me contenho apesar do orgulho

Não acho vantagem entronizar o êxtase 

Basta que durmas em meu ombro enorme

Depois de arrepender-se da refrega


Sentes vergonha mas não aguentas

Tua pele sem as mãos do bruto escriba

Por isso voltas ao sofá da sala

Exibindo a saia até o umbigo


4 de setembro de 2020

MATILDE

 Nei Duclós 


Matilde cruza o deserto do México 

Com toda sua equipe teatral, que dirigia com mão de ferro

E dois Josés

O marido dramaturgo e diretor

e meu avô ainda no berço 

Precisava chegar a Vera Cruz e lá pegar um navio rumo ao Peru


Sentia-se expulsa do pais

Devido a uma desavença com o governo

Naqueles tempos obscuros 

Migrar para longe era sua única saída 

Já que não  podia voltar a Cuba onde perdera o pai Gregorio, ator, de  uma doença tropical

Ou à  Espanha onde maus empresários a aguardavam


Mas foi assaltada e sequestrada por bandoleiros

Que levaram tudo

E resgatada a peso de ouro


Conseguiu chegar ao navio que no trajeto enfrentou um motim da marujada contra o capitão 

Grande atriz, convenceu os rebeldes a  baixar as armas


E foi assim que ela inaugurou no Peru sua saga nos países da América do Sul


Matilde é  minha bisavó 

Heroína de toda uma vida dedicada aos palcos

Foi rainha, mãe, esposa, empresária 

Mulher de veludo e aço

Coração que abraça a coragem


TESTEMUNHAS

 Nei Duclós 


Foi o que restou da tua companhia

Esses poemas que guardo no acervo 

Testemunhas de um tempo vivido 

Na beira do sonho

E ele era abismo  

UMIDA

 Nei Duclós 


Você diz que some

Mas é  coincidência 

Logo agora que  cheguei bem perto 

Você usa sua poção mágica 

O silêncio 


Desconfio que é  só um expediente

Para evitar minha dança da chuva em teu deserto

Tens outro sítio onde festejas com os outros

Viajante a pé espio pela janela

Lá estás, gargalhando


Ao cansar dessa viagem voltarás

Para molhar-te


PROJETO


Nei Duclós 


Tenho pressa

O amor passa pelas frestas

Por debaixo da porta como sombra

Como vento vindo da floresta

Como grito sufocado atrás do monte


Não detecto a fonte desse passo

Talvez seja tu ou minha mente

Que inventa sentir em horas tontas


Atrapalhado no projeto

Perco a  chance de capturar a folha

Desgarrada que em espiral me tenta


Tenho pressa de amor

Mas ele escapa


3 de setembro de 2020

DIFERENÇA

 Nei Duclós

 

Sempre digo amei para não dizer amém

Assim não me confundes com devoção

 

Amor não é  religião,  se fosse eu estaria de joelhos

diante da tua imagem

E teu corpo seria meu templo

Amor é exemplo da Criação

Gênesis cheio de defeitos

Que começa no prazer e enfrenta o conflito

Arcanjo da separação com espada de fogo

 

É jogo de emoção, humana contingência

A divindade se retira e descansa

Ficamos sós com a árvore da ciência

Entre a pomba e a serpente

 


 

SERENA

 Nei Duclós

 

Jogaste fora o amor, comigo dentro

Já era um traste comido pelo tempo

Marcado menos pela dor do que pela indiferença

Os hábitos de deixar de lado a cura das ausências

Agora estou no limbo onde mora a esperança

De sair dele e precipitar-me

Não em busca  do sonho mas da confidência

 

Repartir contigo, nova amiga distante

o impossível namoro e a carga da noite

Não temos mais jeito de seguir em frente

Ficamos na praia, solidão em ondas

O mar nos ensina a cair no poente

E a levantar com a brisa da manhã serena

 


ALÍVIO

 

Nei Duclós

 

Não sei a quem amar e a que horas

O corpo está vazio, copo da aurora

Onde verte o mel no dia frio

 

Palavra que não há

jogo de esgrima

Para estocar o fel

E a purpurina

Mistura de abandono e rima pobre

É só a sóbria solidão do cabra

Armado de facão e ordem escrita

Por um escrivão cego e convicto

A cumprir pena por não fazer sentido

 

Não sei se me perdi

Ou se estou vivo

O fogo roubado em Prometeu

É meu alívio

E aguardo a ave de Afrodite

Comer-me o fígado

 


1 de setembro de 2020

FORMOSA

Nei Duclós 


Cuidas da cura da tua alma

Ferida funda que te deixa amarga

O tempo não cicatriza nem consola

Sabes onde a dor conserva

o alimento que te desespera

 

Nada posso dizer

Já tens quem repartir o desabafo

Posso apenas

postar em tua pele de tormentas

o verso que cultivei te achando solta

Como folha em dia de vento e flor formosa

 


PRINCÍPIO

 

Nei Duclós

 

Viver é uma questão de três refeições por dia

Um teto e roupas

Água para beber e o banho

 

Depois disso  vem a segurança

A educação e os livros

As canções e viagens

A História e a glória

As festas e conversas

A saúde e os conflitos

O futuro e a família

 

Só por último  vem Deus

Que estava ali

desde o princípio

junto com a Economia

 


DESPERTAR

 Nei Duclós


Acordar renova

O dia começa sem memória

O sol esqueceu e lava a cara

A palavra é o amor na mesa posta

 

Depois você lembra mas já é  tarde

A vida traz uma outra história

Estás no próprio  tempo, o presente

E na hora do almoço ela te espera