28 de junho de 2013

FERRO NA UNHA: DITADURA, O DESMANCHE DO INDIVÍDUO






Nei Duclós
Invasão de privacidade é tratar todo mundo como terrorista. Hoje temos prova disso, quando o universo digital se presta à espionagem imperial. A diferença é que estamos na época da espionagem industrial, enquanto os anos de chumbo, no Brasil, estavam mais para a ação artesanal. Em vez de bits e bytes, ferro e unha.

A diferença fundamental, no entanto, é que nenhuma ação invasiva que se limite à linguagem, às mensagens e aos telefonemas se compara ao que foi feito nos porões da ditadura, quando não havia o sequestro da palavra apenas, mas do corpo. No caso do romance“OS VITRAIS DA SALA À PROVA DE SOM”, de MARCO ROZA , de todo o corpo, das vísceras à pele. A tortura, sob o álibi da repressão e prevenção de crimes contra o Estado, fazia uma autópsia sobre organismos ainda vivos, que perdiam os contornos de fora e dentro, da diferença entre criatura e atestado de óbito.

O que faz a literatura com esse evento, como lidar com a tragédia? Uma narrativa tradicional se prestaria à alienação, pois se fundaria sobre percepções irremovíveis, fronteiras consensuais, acordos. É preciso ser fiel ao esquartejamento, o que Marco Roza faz com a eficiência de um legista. A ditadura destruiu o indivíduo, mas não suas pistas, seus rastros. Os órgãos flutuam num ambiente de pesadelo, expostos para o leitor como um funeral de horror, transparente e sem conexões lógicas. O narrador, neste livro, faz parte do desmanche e divide-se em 134 porções fatiadas de textos, que cruzam os monólogos de personagens submetidos ao terror, tanto como vítimas quanto como algozes dos outros e de si mesmos.

Ser fiel ao que aconteceu de fato implica essa apropriação radical de uma literatura sem concessões, trabalhada como síncopes, como fosse também o resultado da dor infligida por um tempo indeterminado, eterno, já que anexou a morte no seu desfecho. Mas a morte, verdadeira, brutal, torna-se forçosamente aparente pois os espíritos vagam com suas heranças de misérias para tentar recuperar o que foi irremediavelmente dissolvido. Brota então todos os humores, suores, rebotalhos, sangramentos, excrementos, medos, ansiedades, gozos e esperanças partidas de quem já foi individuo e se descosturou ao se submeter ao mal lacrado num ataúde que pousa bem no miolo da transparência.

Os personagens se enxergam e trocam de papéis, se cruzam em interprelações intensas, fogem para memórias que voltam mais cruas, tentam expressar o que a tortura sepultou. Mas a realidade, ou o toque definitivo nessa arena confusa que ainda alimenta alguma esperança, é o caixão de conteúdo indevassável. A claridade dolorosa da narrativa tropeça na escuridão do que foi imposto. A ditadura vence e os personagens só conseguem escapar quando transcendem o beco sem saída em que foram metidos. Encontram então um país modificado, indiferente à sorte dos combatentes, de olhos tão fechados quanto o que foi enterrado em lugar remoto.

Os vitrais da dor exposta, em confronto coma escuridão do caixão bem no meio da sala onde a linguagem das vítimas dominam, é a espinha desse livro que soma os gritos de quem se foi e que ao mesmo tempo revela seu espólio. Pois aqui a literatura não se presta ao jogo das aparências sob custódia, que sobram no imaginário imposto por inúmeras linguagens, tanto as corporativas quanto as políticas, culturais e religiosas. Trata-se de recuperar o perfil perdido de uma história brutalmente assassinada e que se presta a manipulações de todas as tendências. E que remove, pela literatura, a capa criminosa de quem ainda tenta escondê-lo.

RETORNO - Serviço: Email do autor: marcoroza@gmail.com - Contato através de 0800-11-1239. O livro aqui.