22 de julho de 2011

BILLY WILDER: A CELEBRAÇÃO DA DENÚNCIA


Nei Duclós

Em 1964 Billy Wilder chocou os conservadores com Kiss Me Stupid, que roteirizou junto com I.L. Diamond e trata da sublimação. No conceito freudiano, uma pulsão é sublimada quando se orienta para um alvo não-sexual, procurando objetos socialmente valorizados. A origem continua a ser sexual , mas o resultado não. A tesão sublimada dos carolas que querem fechar o puteiro, no filme, é representada pela partilha de um bolo de aniversário de casamento.

Na pequena cidade, todos estão nessa mesma situação sublimada: o compositor sem família que sonha com o sucesso; o marido fiel que fetichiza a bela esposa como um objeto sexual da devassidão de todos os que se aproximam dela, quando tudo é fruto de suas compulsões; a velha que fala de maneira obsessiva sobre o casamento ideal da filha; a esposa perfeita que na juventude foi presidente do fã-clube do bonitão e acaba se entregando para ele; a prostituta que sonha com a mobilidade, a fuga, como uma forma de sair de sua profissão e fazer uma família; o cantor de sucesso e mulherengo que deixa as coristas esperando por ele enquanto aproveita para ir embora, rumo aos seus parceiros da noite.

Os personagens são desmascarados quando trocam de papéis e se entregam para as origens da sublimação. O marido vira corno, bêbado e dorme com a prostituta, que tem uma noite de dona de casa. A esposa perfeita aproveita para fazer sexo com seu ídolo, o compositor trai o cliente para apanhá-lo numa armadilha. É uma desfaçatez atrás da outra, para dizer que a repressão mata os sonhos e transforma o indivíduo num personagem oposto ao que é de verdade. No fundo, é a repressão que não presta, pois não tem importância (“me beija seu imbecil e pára com isso” diz o mote do filme), mas é tão levada a sério que acaba vingando no cenário isolado de uma cidade perdida no meio da estrada.

O filme é um arraso, os atores são de matar. Dean Martin detona como o conquistador de voz de veludo, Kim Novak deslumbra com seu talento e beleza, Ray Walston, que felizmente substituiu o eterno Jack Lemmon (que desistiu por ter outro compromisso) está ótimo como o marido ciumento, a mulher de Lemmon, Felicia Farr convence como a bela esposa que acaba num trailer vagabundo, e Cliff Osmond é o hilário letrista que arma toda a bagunça. É um filme muito mais radical e transgressor do que tantas porcarias que ficam mostrando sexo explícito e não passam de baboseiras metidas.


Em Billy Wilder, sexo define o papel social: o pai de família, a dona de casa, a prostituta, o celibatário religioso, a viúva que vive de pensão, a mãe, os tios, os avós , o solteirão, o bígamo, o homossexual. Billy Wilder não compactua com essa sintonia e mexe fundo na relação entre a criatura e sua personagem, a biologia e o teatro, o script encomendado e transgressão da persona reconhecida. O mais impressionante é que ele abordou isso numa época de extrema repressão e soube dar charme e encanto ao drama vivido pela sociedade de massas, à mercê dos apelos sexuais da indústria do espetáculo e o rigor (que acabou implodindo com o tempo) das tradições. Arranjou encrenca bastante, mas deixou um rastro de obras-primas. Algumas eu vi há tempos, outras nos útimos dias,pois fui atrás da Obra para entender melhor o Mestre.

Seus filmes estão cheios de referências a esse fosso entre intenção e realidade: a prostituição disfarçada (The Apartment) ou romântica (Irma La Douce), o homossexualismo consentido (Some Like it Hot), oculto (Primeira Página), ou em forma de calúnia (A vida secreta de Sherlock Holmes), o lirismo das traições (Avanti!), o ridículo da fidelidade doentia (O Pecado Mora ao Lado) a insubordinação da Terceira Idade (Crepúsculo dos Deuses). O mal entendido em relação aos papéis sociais são recorrentes no filme. “Mas eu sou homem!” grita Lemmon no célebre final de Quanto Mais Quente Melhor, ao que recebe a resposta do velho homossexual que sabia de tudo: “Ninguém é perfeito”. Ou a troca de roupas no banheiro do avião entre dois homens no início escandaloso de Avanti!, que era apenas uma combinação sem outra conotação sexual.

Sua maior transgressão, dentro dessa abordagem, é criar cenas onde não há sex appeal e os protagonistas tentam se relacionar em vão. Quem esquece o marido no sétimo ano de casado que, para desespero da platéia masculina, não traça a mulheraça que é Marilyn Monroe, que dá aquela bandeira da saia levantada no metrô? Ou o executivo Fred McMurray que trata com indiferença a linda Shirley McLane? Ou mesmo Jack Lemmon, coitado, nadando nu em Avanti!, para desespero da parceira e dos espectadores?

E os “casais”?Walter Mathau e Jack lemmon em A Primeira Página, que trocam juras de amor, discutem a relação e acabam sendo inimigos da vida conjugal heterossexual; o travesti Tony Curtis que tenta seduzir a louraça Marilyn; o milionário Lemmon travado que descobre o prazer com a filha de uma manicure; o funcionário subalterno que empresta o apartamento para o chefe fazer sexo com o amor dele, funcionário? Billy é cruel o tempo todo, e brilhante no que pode ser encarado como denúncia, mas para ele era divertimento.

Billy nasceu numa cidade que fazia parte da Austria e hoje é na Polônia. Nasceu num lugar sem humor, numa época de grandes guerras. Migrou para a festa explícita do cinema americano. No início de Beija-me, idiota, todos os garçons morrem de rir de Dean Martin, menos um, com cara de polonês. Os colegas então o cutucam para rir também. Ele pensa que o estão advertindo sobre o mau uso que faz do guardanapo. O garçom de cara amarrada então, rapidamente, muda o guardanapo de braço, para imitar os outros. Essa talvez seja a representação da arte de Wilder: um outsider que tenta agradar os anfitriões com o que eles sabem fazer, a piada, o ritmo, o riso, o deboche. Mas que acaba trocando os papéis magistralmente, pois suas comédias são dramas e suas denúncias, pura celebração.


RETORNO - Imagens desta edição: no sofá vitoriano, em que o casal fica sob a guarda de uma tia velha e surda, Dean Martin e Kim Novak giram em torno do tricô de Ray Walston. Na foto do meio, Tom Ewell olha o jogo de sedução de Marilyn. O panaca sortudo e desesperador.

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