17 de julho de 2011

BILLY WILDER ABRE O BAÚ DE SHERLOCK HOLMES


Sherlock Holmes é personagem literário, por isso não pode viver longe do seu biógrafo, o dr. Watson, que o inventa por meio da narrativa. Ambos são criação de Conan Doyle, que coloca assim o relacionamento entre a dedução, que é a lógica em parceria com a imaginação, encarnado pelo detetive, e a sua versão idealizada e redutiva, sem nenhuma sofisticação e análise, representada pelo médico. A visão mais tosca dessa relação é a calúnia, ou seja, de que ambos formam um casal homoafetivo, quando o fato é que as duas criaturas siamesas convivem forçadamente com suas diferenças por imposição da literatura, já que fora dela não existiriam. O que pode ser feito para revelar essa complexidade? É preciso que o autor seja socorrido por um dos seus pares, no caso, o gênio de Billy Wilder.

No seu filme A vida secreta de Sherlock Holmes (1970), Billy Wilder revela um caso complicado em que Holmes teria levado desvantagem pela primeira e única vez (e esse seria o motivo da publicação tardia do evento). É pura criação cinematográfica, fundamente baseada na obra de Conan Doyle. O filme inicia e termina com páginas escritas, delimitando assim o lugar onde a história se circunscreve, um roteiro imaginado por um Watson morto (não pertencente mais à obra original) e que coloca na roda dos aficionados 50 anos depois de seu desaparecimento (portanto, já na era do cinema). O caso é o desafio proposto por uma espiã do império austríaco, exatamente onde Wilder nasceu (em Sacha, hoje pertencente à Polônia) , o que é uma metáfora poderosa do filme, pois essa personagem mulher seria a interferência de Wilder na história.

O deslocamento narrativo, da abordagem fora da Inglaterra por uma protagonista mulher pertencente ao “inimigo”, incide sobre os lugares comuns britânicos mais caros: a pontualidade exagerada como uma improbabilidade hilária, a governanta que trata seus hóspedes como crianças levadas e não como adultos solteiros, o puritanismo sexual elevado ao máximo absurdo, como a proibição de haver sexo na casa de hóspedes, ou a separação dos corpos do casal na cabine do trem, acrescidos do clima execrável e a falta de calefação adequada nas prisões e a ingenuidade da rainha diante dos avanços tecnológicos da guerra.

Esses excessos estão sintonizados com os desvirtuamentos narrativos do biógrafo, que pinta seu personagem sem defeitos, exagerando na dose, o que causa uma reação ferina de Sherlock (interpretado por Robert Stephens). O biografado assim escapa das garras do seu narrador que não consegue enquadrá-lo devidamente. E também escapa da percepção original que os leitores tem da obra, quando lidam apenas com as aparências das histórias e não mergulham na leitura de seus sinais. Essa independência é representada pelo vício da cocaína, algo que o seriíssimo Dr.Watson (Colin Blakely ) não consegue impedir. Watson entra em conflito permanente com Sherlock, no filme, por tentar se livrar dele de alguma forma, ou mentindo sobre o relacionamento dos dois para escapar de uma bailarina louca, ou porque o detetive se deixa levar pela mão da espíã (Geneviève Page). O que no início parecia homossexualidade de Sherlock é a impossibilidade de se relacionar com as mulheres devido ao seu ofício de desconfiar de todos. Um casal só existe na confiança mútua, como a que existe entre personagem e biógrafo nas páginas literárias.

Mulheres são traiçoeiras, como comprova a noiva que morreu de gripe uma semana antes de casar com o detetive. E a regra é confirmada pela falsa esposa que procura o marido e se revela a espiã inimiga. Mas a ligação acaba acontecendo e o amor só pode ser declarado por código Morse, quando tudo está perdido. Gente não passa de linguagem e os fatos são apenas representações, fruto do uso ou encarnação das palavras e imagens. A genialidade do filme é mostrar a imortal criação de Conan Doyle como uma obra aberta, que no fim confirma a escrita original. O que parece escapar da origem, da autenticidade da fonte, apenas a reforça. Mas com a sofisticação de denunciar que tudo não passa de criação literária e cinematográfica.

Não se trata de “atualizar” a obra, seria óbvio demais. Mas de descobrir nela o que parece faltar (o romantismo de Sherlock, mesmo não sendo um sentimental), ou de desmoralizar o que parece fazer parte (a relação homossexual que não existe). Sherlock é afetado não por não gostar de mulher, mas por fazer parte de uma civilização que transcende nações, já que se identifica com seus pares, como a espiã austríaca, e se indispõe tanto contra a Scotland Yard quando seu irmão, o sinistro burocrata governamental (interpretado por Christopher Lee).

Wilder abre o baú dos personagens de Doyle sem fazer nenhuma cerimônia. A riqueza visual, que começa acanhada no apartamento e nas ruas do fog londrino, abre-se para as paisagens da Irlanda. É o amor que desabrocha e torna-se datado e ao mesmo tempo eterno. O vicio da droga não é só o tédio por não haver um caso à altura da mente brilhante do detetive. Mas porque nesses hiatos não há como escapar da solidão. Sherlock ama o amor impossível. Nada mais século 19, numa história que mostra a engenhoca submarina como tentativa de transcender a época . E onde a metáfora de Jonas, ao personagem bíblico dentro da baleia, nos remete ao que estava oculto na vida de Sherlock e que agora vem à tona pelo mesmo caminho, a criação artística de um gênio do cinema, que aqui conta, no roteiro, com a proveitosa parceria de I.A.L. Diamond, seu companheiro em outras grandes obras como A Primeira Página.


RETORNO - Imagem desta edição: Billy Wilder.

Nenhum comentário:

Postar um comentário