12 de maio de 2018

EU, DANIEL BLAKE: DENÚNCIA É CINEMA

Nei Duclós
  

O filme de Ken Loach, Eu, Daniel Blake, de 2016 e que ganhou a Palma de Ouro de Cannes de 2017, expõe a individualidade pressionada por um sistema de imagens e sons representativos da opressão do Estado. Uma individualidade que se expressa por meios anacrônicos não contaminados como forma de denúncia.

A tela do computador onde precisa se cadastrar para ter acesso aos benefícios sociais depois de sofrer um enfarte no trabalho (carpinteiro altamente qualificado com 59 anos), a conversa dos vizinhos pelo skype com um fornecedor de tênis da China, as horas perdidas no atendimento que nunca atende, se opõem à pichação que Blake faz na parede da empresa (americana, terceirizada) encarregada pelos benefícios sociais negados, como auxilio doença e seguro desemprego.

É na parede pichada com seu nome e sua reivindicação que Daniel Blake assume sua individualidade, fora do sistema de códigos visuais e auditivos que o mantém no desemprego sem apoio e o empurram para a miséria. Ele exige ser atendido e para isso atrai a multidão que o aplaude, estimulada pelo arauto que, à maneira dos antigos, anuncia sua insubordinação e a súbita liderança pelo exemplo.

Seu recado final não é ditado por email, messenger, what´s up, instagram, facebook. É texto escrito a lápis em papel. É seu ultimo reduto de identidade real, num funeral de pobre, nas primeiras horas da manhã na lúgubre e chuvosa cidade no nordeste da Inglaterra. Essa é a denúncia do filme: o próprio cinema, feito de memória dos frames e assumindo as ferramentas da inovação na mão de grandes autores, escolhe suas armas fora do sistema digital contaminado e se refugia na representação das ferramentas clássicas da expressão, como tinta na parede, papel, lápis e a viva voz sem intermediação.

Carpintaria é o ofício tradicional dos mestres que resistem em seus redutos de integridade. E o cinema é a arte que desmascara as ferramentas que tentam substituí-lo, inoculando nas salas escuras que ainda existem e na rede (vi no Netflix) sua força de Sétima Arte.



2 comentários:

  1. Excelente crítica. Esse filme é um retrato dos nossos dias, quantos como Daniel não morrem todos os dias tentando lutar contra essas forças opressoras?

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  2. Obrigado. É um massacre diário coletivo.

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