7 de setembro de 2016

O GRITO E O ESCRITO



Nei Duclós

Estamos atrasados em tudo, inclusive na relação com nossos mitos nacionais. História e mitologia (não confundir com mistificação) são vasos comunicantes, mas tem suas especificidades. Ambos convivem bem em outros países. Enquanto aqui ficamos marcando passo sobre o Grito do Ipiranga que não houve (com o detalhe escabroso da desinteria do Imperador) nos Estados Unidos eles não abrem mão de Lincoln, mesmo mostrando que o grande presidente teve de comprar congressistas para libertar os escravos.

Na França ocorre o mesmo. A carnificina revolucionária redundou em ditadura civil (Robespierre) e militar (Napoleão). A Bastilha nem foi tomada pois não havia ninguém lá (exceto o marquês de Sade e suas taras). A Queda da Bastilha como marco da Revolução foi inventada pelo historiador-poeta Michelet quarenta anos depois. Pois vá à França ver o que os estudiosos fazem com o passado, devassando-o sob todos os aspectos, mas lá ninguém abre mão do 14 de julho, símbolo do orgulho nacional pela República que não durou e acabou na recondução da dinastia dos Bourbon, sem falar no repeteco autoritário do Napoleão III já na segunda metade do século 19.

A Independência do Brasil foi um evento heroico que incluiu uma guerra de três anos (1821-1823) e milhares de mortos. Houve luta contra as forças armadas portuguesas. A armada imperial de Dom Pedro, liderada por Lord Cochrane, um mercenário inglês, que, junto com as forças em terra, militares e povo em armas, expulsou os portugueses. Estes fizeram uma revolução no Porto para que o Brasil retornasse à situação de subalterno, pois desde 1808 ocupava o centro do Império, com a vinda do príncipe regente e mais tarde rei Dom João VI.

Mesmo a assinatura da Independência não coube a Dom Pedro, mas à sua esposa Imperatriz Leopoldina, que tomou a decisão junto com José Bonifácio.Isso tudo é Historia. Mas há a mitologia nacional, o verde e amarelo (cores da família Bourbon), o 7 de setembro (marco mitológico da ruptura não pacífica), a bandeira (adaptação da bandeira imperial) e o Hino (letra republicana sobre melodia da época da monarquia).

Quando ouço os locutores anunciarem o milésimo momento histórico do dia, insisto que a História não é visível a olho nu e depende da costura que o historiador faz dos fatos, a partir dos documentos e das fontes. Há inúmeras escolas históricas. Desde a clássica, de Ranke, passando pela do materialismo histórico, de Marx, ou da Annales, dos franceses, a microhistória etc.

O pecado maior é o anacronismo, que é ver o passado com os olhos do presente, normalmente feito com intenções políticas, desde a velha patriotada até a atual politicamente correta. Patriotismo nada tem a ver com patriotada. Patriotismo é enxergar os fatos passados e celebrar a identidade nacional por meio dos mitos consolidados no imaginário nacional. Patriotada é usar os mitos para implantar ditaduras, disfarçadas ou não de democracia.

Não se pode tentar misturar História com os mitos. Uma nos orienta sobre nosso passado e lança luzes sobre o que somos. A outra são representações simbólicas que definem o sentimento de pertença, fonte do motivo maior da existência de uma nação, que é a sobrevivência da população.

Vale o Grito e vale o escrito. Mas não o escrito no grito.

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