Nei Duclós
Faz tempo. Houve uma vez um duelo na minha cidade,
Uruguaiana. Dois desafetos se enfrentaram a tiros no centro, na Duque, perto da
Esquina Maldita, onde a maledicência batia ponto ao lado de uma parede de
mármore preta, dos bancos (talvez existisse ainda o da Província), da Borboleta
(onde tínhamos conta para todas as revistas da época como Manchete, Cruzeiro,
Seleções, Alterosa e as argentinas Para Ti, para senhoras e moças, e Billiken,
para a gurizada). Não morreu ninguém no embate de fogo feito a revólver, mas
foi um evento inesquecível para o paulista que estava de passagem, tendo vindo
a negócios e compartilhava de algum assunto com meu pai.
Lembro bem da figura, que nunca mais apareceu por aquelas
bandas. Era baixinho, elegante, de cabelo lambido e um certo topete, muito
comum na época. Usava terno esportivo, com casaco e calças claras, sem gravata.
Bem articulado, tinha o dom da narrativa.
Ele apareceu em casa um dia depois do duelo para nos contar
sobre sua participação involuntária no fandango. A bala de um dos participantes
do confronto ricocheteou no asfalto da rua ou na calçada, fazendo sobrepique
numa parede e passou raspando pela sua barriga. Combinando dor com presença de
espírito, nosso herói não entrou em pânico, não saiu correndo, não fez estardalhaço.
Ele se contraiu e se abaixou, como se estivesse na guerra. Fazia parte da
cultura de trincheiras: você se protege enquanto corre o tiroteio. Para
ilustrar o ocorrido, mostrou a queimadura da bala na extensão da barriga, toda
enfaixada.
Nunca esqueço o desfecho do seu relato preciso, que nos
deixou com a atenção suspensa no ar. Aí eu me abaixei e olhei em volta, disse
ele. E fiquei por ali, aguardando os acontecimentos. Essa expressão, aguardando
os acontecimentos, nunca me saiu da memória. Hoje relembrando por acaso essa
porção de tempo perdida por aquela fronteira, me dou conta que se trata de uma
lição valiosa. Se você é impactado de surpresa por algum perigo, você se
protege, presta atenção e aguarda os acontecimentos. Pois pode vir nova bala e
você estará à mercê novamente do tiroteio. O tiro poderia ter sido dirigido a
ele, nunca se sabe.
Com sua atitude, ele notou que se tratava de uma briga entre
dois elementos furibundos com alguma traição, financeira ou doméstica, e que
ele só tinha sido ferido porque estava no caminho, misturado à multidão do
centro da cidade, pois naquele tempo as cidades estavam vivas, cheias de grupos
de conversas, em volta de bilhetes de loterias, de duplas que se enfrentavam se
batendo com apenas dois dedos, o fura bolo e o pai de todos, até sair farinha
deles, como se dizia, o que juntava rodas de apostadores e desocupados. Mas
como soube aguardar os acontecimentos saiu ileso e podia contar a história no
dia seguinte, para assombro da família que o escutava muda.
Ele bem que poderia dourar a pílula e florear o evento,
exagerando na sua participação de protagonista e vítima. Mas ele deu outra
lição: a de que uma narrativa enxuta, objetiva, era muito mais emocionante do
que qualquer exagero retórico.
Grande cara.
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