4 de setembro de 2014

LE MÉPRIS: GODARD SE DESMISTIFICA



Nei Duclós

No programa Filmes que marcaram época, do Canal Curta!, um documentário sobre Le Mépris (O Desprezo, 1963), de Godard, com Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Fritz Lang e Jack Palance. Revelações ótimas. Não tínhamos filmado nem um terço do roteiro e esgotamos o prazo da locação, diz o diretor adjunto. Foi preciso preencher o vazio, disse Godard. Uma cena entre Picolli e Bardot dentro do apartamento dura 34 minutos, diz um entrevistador.Isso ocorreu também em Pierrot Le Fou, diz Godard. É uma incompetência minha.

Você não mostra o acidente que mata Palance e Bardot, diz Lang. Prefere mostrar a consequência. Isso é elipse, é algo extraordinário no seu cinema. Sou incompetente para filmar um acidente, diz Godard. Teria de contratar dublês e destruir um Alfa Romeo. Não tive a intenção da elipse, seria ridículo. O símbolo sexual do planeta não aparece nua em teu filme, disseram os investidores americanos. Godard jamais diz não vou fazer, diz um colaborador. Falei que filmaria xis minutos de nu, diz Godard. Mas dentro da coerência do filme.Na cena pudica em que Bardot aparece de bruços na cama com Piccoli, ela faz um inventário de cada parte do seu corpo, diz o colaborador. É uma cena sobre o máximo da intimidade entre um homem e uma mulher.

Bardot deve ter estranhado que não foi assediada por ninguém no set, diz Godard. Ninguém tentou seduzi-la, nem eu. Ela usava um coque no cabelo idêntico ao que mostrou no filme recém feito do Roger Vadim, E Deus criou a mulher. Falei que iria cortar um centímetro da cena na medida em que ela fosse cortando aquele penteado, diz Godard. Falei para o diretor assistente para ela deixar o cabelo livre. Mas Bardot foi assediada pelos paparazzi, que não deixavam a equipe em paz. Os fotógrafos escondiam-se no alto das montanhas para conseguir imagens. Em certa altura o próprio Godard subiu lá para enfrentar os caras, que se vingaram e deram entrevistas agressivas dizendo que iriam desmascarar Bardot.

"Em O Desprezo (1963), Godard, homem do norte, de águas cinzas e nuvens pesadas, encontra a luminosidade do Mediterrâneo. Antes de fazer o filme ele definiu as cores básicas, clássicas, que o compõem", diz o diretor assistente. Godard: "As pessoas tem coragem de viver qualquer vida, seja mendigo ou corretor. Mas não tem coragem de imaginá-la. O cinema precisa resgatar essa coragem. A câmara cinematográfica é como um microscópio, mostra o que as pessoas não conseguem ver, seja o infinitamente pequeno ou grande.O cinema deve mostrar a terceira imagem, aquela que não é percebida pelo público quando vê o filme pela primeira e a segunda vez. A que nem aparece na tela, mas existe."

“Falei uma vez que os jovens decidiam o que era Nouvelle Vague”. Como Godard podia saber tanto sobre nós? diz o ex-jovem numa entrevista. Ele reportou e ao mesmo tempo formatou um novo modo de vida. As pessoas começaram a decorar seus apartamentos conforme viam nos filmes dele. Aqueles móveis de op arte, aquela disposição dos interiores.

Um documentário muito bom. Espero que repitam, como repetiram até a exaustão o do Bertolucci e o do David Lynch. Lembro que vi várias vezes esse filme nos cinemas. Levava amigos para sofrer nas mãos de Godard, coisa que nunca mais fiz, pois Godard torra com seus improvisos. Só quem gosta demais curte. O lento travelling sobre a estátua de Poseidon ao som da música de Georges Delarue, que compôs depois de ver o filme montado. Dei apenas algumas sugestões, diz Godard, mas ele fez o que quis.

A fúria de Palance na cena em que reclama com Lang que o roteiro não está no filme que está sendo feito (claro, Le Mépris é totalmente sobre cinema). É por isso que se chama motion picture, diz Lang. O roteiro é palavra, o filme é imagem.  O desprezo do título é o desprezo de Bardot por Piccoli, roteirista que rifa a mulher em função do trabalho que abraçou. Tenho nojo quando você me toca, diz ela.

Há excelente entrevista de Lang no programa do Curta!. Ele fala que cortaram cenas de filmes dele nos Estados Unidos (como fazem, diz, na Alemanha e na Inglaterra). Cenas fundamentais, que justificavam o filme.

Godard falou bem de alguns produtores, que o aturavam, mas num momento do festival de Cannes Fellini disse que ele estava exagerando. Não estou não, disse Godard. Não fosse Carlo Ponti você não teria feito La Strada. Só a França tem cinema de autor, dizem Lang e Godard. Hoje há algumas ilhas de filmes independentes, mas o cinema de autor praticamente acabou, diz Godard.

Que tragédia, digo eu. Fui formado para um cinema que não existe mais.

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