21 de outubro de 2011

NA CARRETERA


Nei Duclós

Espanholismos fazem parte do vocabulário da fronteira gaúcha. A estrada principal é a carretera, que na minha infância era de barro, pelo menos até 500 km ao norte, Santa Maria. Na lama também fiz algumas viagens com meu pai, como a que levou dois dias para chegarmos a São Borja, trajeto que se faz hoje de Uruguaiana em poucas horas. Chovia demais e fizemos a volta por uma série de pequenas cidades das quais não lembro o nome – e recompor o roteiro no Google Maps talvez não ajude a recuperar aquele caminho sinuoso em que acompanhei a concentrada presença paterna nos seus negócios.

Lembro que a chuva nos obrigou a parar no meio do caminho, num hotel do mais profundo interior, em que gostei demais do cheiro de casa velha e os boníssimos edredons seculares que me protegeram do frio. E a inesquecível Pensão da Siá Mulata, onde me refiz da viagem com pratos populares capitaneados por atencioso dono e chef, que por ser negro destoava dos empreendedores da região.

Pior foi a viagem até Porto Alegre em que compartilhei a dureza do jipe Candango, opção do pai nacionalista, que tinha cansado de Fords e Austins e resolvera abraçar a causa da tração das quatro rodas do veículo feito a martelo sem design convincente, mas que se tornou a marca registrada da sua passagem pela cidade rumo aos peixes das redondezas. Em cima do candango ele punha o barco de fibra de vidro com motor de cinco cavalos, ideal para navegar em arroios cheios de surubis e dourados. Claro que havia também os cascudos e grumatãs, estes com gosto de barro, mas o objetivo era o chamado peixe nobre. Rodelas de dourado eram fritos na beira do rio e disputávamos com moscas varejeiras o privilégio de abocanhar o quitute acompanhado de cerveja geladíssima na caixa de isopor.

Gosto de contar a história do meu irmão que herdou o Candango e se aventurou até Florianópolis num dia chuvoso, em que existia apenas uma faixa central transitável, já que as margens da carretera estavam tomadas pelo barro. Um fusqueta invasivo tentava ultrapassá-lo em vão, pois era impossível chafurdar no lodaçal só para deixar passar o indigitado. Ao perder a paciência, meu irmão puxou o facão de três listras (assim mesmo, com erre no meio, como se diz por lá) debaixo do banco e sacudiu no ar para deixar claro suas más intenções contra o assédio. O fusca sumiu no horizonte e só reapareceu timidamente logo depois, quando a estrada melhorou de humor. Meu irmão então sacou de novo a peixeira e com ela fez sinal para que passasse, o que foi obedecido de maneira ressabiada, já que o automovelzinho resfolegava bem no cantinho do acostamento, como um cachorro com medo de surra.

Mas nada se compara a uma epopéia memorável que fiz com minha irmã e cunhado, este um alemão gigantesco e apaixonado pelo pior carro do mundo para enfrentar o barro da carretera: a kombi. Foi quando aprendi o que eram correntes de pneus. Eles pôs o capote de ferro na borracha para evitar atolamentos, mas como não cabia na tala, já que era de outro tamanho, a toda hora escapava. Vá ver a corrente, me dizia ele. E eu não sabia do que se tratava. Foi quando ficou consolidada minha imagem anti-pragmática, que me persegue injustamente até hoje, já que provei minha capacidade de dar três marteladas seguidas sem bater no dedo.

Levamos dias para cruzar o Rio Grande do Sul até chegarmos no Norte do Paraná, onde ficamos um dia inteiro esperando que o carro fosse consertado. Ao nos aproximar de Goio Erê, perto de Campo Mourão, cruzando a mata num lugar que hoje só tem pasto, um veado cruzou a estrada. Ao que o gringo imediatamente parou para puxar uma pistola. Mas era só pose de caçador amador. O bicho, assim como surgiu no clarão do farol, sumiu.

Eram assim as histórias e criaturas do barro e da carretera, pertencentes ao Mundo Perdido, o Brasilzão profundo, onde fui criado, graças ao Pai Eterno que teve misericórdia de mim e não permitiu que eu crescesse nos dias de hoje, quando não há mais nada a não ser a tela do micro onde narramos nossa desventura.


RETORNO - Imagem desta edição: Manada, de Anderson Petroceli. Tudo o que o Anderson fotografa se torna inesquecível.

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