2 de outubro de 2011

MOBY DICK: NÃO VER, A RUPTURA EM JOHN HUSTON


Nei Duclós

A Queda, chão que falta subitamente à Criação, é provocada pela indiferença. A divindade se vinga do bocejo colocando prazo de validade na criatura. Sua intenção original, já que tratava da imagem e semelhança, seria a eternidade, mas esse projeto perdeu o sentido com o que chamaram de pecado e foi apenas uma insubmissão ao delírio da ação, a sesta contra o baile de gala.

Não bastou, para o Criador, decidir sobre o tempo datado do ser, foi preciso estender o anátema a toda espécie. Esse drama é pontuado pelo esforço em superá-lo. Isso, em John Huston, se faz por meio da insânia, que é a ruptura da indiferença por meio de um ato de vontade de objetivos gigantescos. Pode ser o de decifrar a alma humana, como em Freud, ou capturar a baleia branca, como em Moby Dick. Mas a tarefa é enorme, precisa de alianças. A exemplo de Deus, que fez o pacto depois da borrasca, o capitão Ahab (inesquecível personagem de Herman Melville interpretado pelo assombroso Gregory Peck numa performance de gênio) seduz as pessoas para conseguir a meta.

O discurso do convencimento entra na roda, em Freud, por meio da argumentação, a pesquisa e a dedução. Em Moby Dick por meio do discurso profético, de tom bíblico, apoiado pelo despertar da cobiça, pois o humano em Huston é a malvadeza, sua denúncia favorita contra a máscara de falsos sentimentos que costumam vestir a selvageria dos civilizados.

Tanto a alma cheia de neuroses quanto sua representação, a baleia arpoada por inúmeros caçadores, estão ocultas. A arma para a sobrevivência é não ser visto, mas o que fica submerso se transforma em sufoco. O doente mental está preso na neurose e precisa achar a porta da saída. O capitão Ahab sofre na obscuridade, carrega sua maldição e ódio, sua obsessão pelo que identifica como sendo o Mal. Ele não aparece para a tripulação nas rotinas do navio, esconde-se e só à noite sugere sua presença por meio do assustador passo com a perna feita de osso de baleia.

Moby Dick também se esconde. É mortal a cena em que apenas as aves indicam a presença do monstro oculto, enquanto o rosto enlouquecido do arpoador se equilibra na fragilidade da sua perseguição. Não vemos as vítimas por algum tempo até que elas assomam com estrondo, tanto no parapeito do barco quando no meio do oceano levantando espuma. Ver então é uma tempestade, irmã gema da cegueira. Os doutores que acompanham Freud não enxergam o que ele vê na sua ânsia de mostrar a solução da charada. E a tripulação de Ahab está sem perceber a verdadeira chave daquele enigma. Foram fisgados pela autoridade e o discurso do navegador, mas só conseguem ver que ele foi arrastado para sempre.

O cinema, arte de ver, precisa sugerir que o núcleo da ação se situa fora da tela: dentro da cabeça dos doentes mentais ou no fundo do oceano, onde dorme o mamífero gigante. Como Huston faz essa sugestão? O barulho dos passos da perna de osso de baleia do capitão que os novatos ainda não viram pessoalmente, ou as aves que sobrevoam o cetáceo mergulhado crispam os rostos e olhos dos protagonistas, a mostrar que a imagem é apenas a margem de um espaço mais amplo, a palavra, ou sua queda, o ruído.

Não ver ocupa a posição de protagonista nestes filmes de Huston. Ele prefere mostrar o impacto do enigma nos rostos clássicos de brutalidade, já que seu cinema é também arte pictórica de tom sacro (basta ver Orson Welles discursando na nave de um templo antes da viagem fatal). Marinheiros, Imediato, famílias, o pastor, todos se esforçam para ver o que está oculto e o cineasta mostra esse direcionamento do olhar para algo que não se revela num primeiro momento.

As mulheres compenetradas e sinistras em grupos no cais diante do navio que parte para o perigo extremo, os marujos que lutam por uma moeda de ouro e sofrem de alucinações na calmaria, o arpoador que lê nos buzios a própria morte e emudece para morrer e é tirado do torpor pela pressão da crueldade dos vivos, o capitão que suspende uma caça proveitosa em favor de uma ilusão, de um gesto demente: criaturas que não vêem e acabam sendo devorados pelas revelações.

A insânia é uma forma de a criatura convencer o Criador que nem tudo é indiferença na planície. Há também esforço em ficar à altura da Criação, nem que para isso nos chamem de loucos e nos joguem coisas quando decidimos abordar certos filmes com o espírito desarmado e a alma livre.

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