8 de março de 2011

TIOS


Nei Duclós (*)

A palavra tio perdeu o valor quando virou apelido de desconhecidos. Mas tive tios inesquecíveis, personagens de uma literatura que roda pelo Brasil profundo. Com pai de origem muito pobre, conheci seus irmãos que gravitavam em torno da nossa vida. Ganharam nomes comuns na época, como Valdemar, que se aposentou como sargento da Brigada e não teve filhos, e Antenor, pescador de casamentos e proles inumeráveis. Alguns acontecimentos protagonizados pelos dois se tornaram clássicos na família.

Valdemar lutou em quatro guerras, de 1923 a 1932. Primogênito, precisou trabalhar desde cedo e encontrou a salvação na farda do exército estadual, onde era possível ter um soldo, rancho e até mesmo uma certidão de nascimento, rara naqueles ermos. Grande cozinheiro, especializou-se em pães saborosos e pastéis de fechar o comércio. Como éramos uma quadrilha de petizes vorazes a rondar o padeiro, que conseguia o ponto quando a primeira gota de suor caía na massa, ele um dia propôs um desafio.

“Vocês vivem reclamando que faço pouco. Hoje vou fritar pastel até arrebentar”. E começou a gincana. No milésimo exemplar depositado na enorme bandeja e devorado em meio segundo, jogou tudo para o alto. “Não adianta. Vocês tem ácido de bateria no estômago”. É célebre sua predileção pela carne de frango, que exigia nas campanhas militares, quando acampava com seu destacamento em sítios de criação. “Tem galinha?” era a senha que decidia o pernoite. Um dia resolveu criá-las. Comeu tudo antes do lucro.

Conto sempre as histórias de Valdemar e deixo de lado as peripécias de Antenor, mais ausente, mas não menos folclórico. Jogou fora o fogão presenteado por meu pai porque a comida tinha gosto de gás. Morava em barracos caídos e por muito tempo dispensou as portas. Costumava apertar os dedos nelas porque não estava habituado. Vivia na beira do rio desenredando linhadas. Quando foi contratado para cuidar do armazém montado no grande galpão nos fundos da minha casa, acabava dormindo em cima da balança que pesava os sacos de mantimentos.

“Vão comprar no Mirotti”, dizia para os fregueses insistentes, encaminhando-os para o bolicho mais próximo. Virava-se para o lado e continuava a dormir. Grandes tios.


RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 8 de março de 2011, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei de um power-point sobre remédios antigos.

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