2 de agosto de 2009

DOIS ESCRITORES DAQUELAS REDAÇÕES


Nei Duclós

O copy-desk, profissão extinta, era o lugar onde se refugiavam os escritores. Como não há profissão de escritor, éramos empurrados para acertar o texto alheio, cuidar do fechamento e pendurar piadas no mural, pois não podíamos deixar de exercer a verve vinda do berço. Em Blumenau, em 1971, na inauguração do Jornal de Santa Catarina, tive a sorte de trabalhar com um dos grandes e saborosos textos da minha geração, Virson Holderbaum, hoje usufruindo sua digna aposentadoria depois de décadas na militância jornalística, onde fez de tudo, de reportagem a edição, projetos especiais sobre cidades e campos, rádio e jornal, entre muitas outras coisas. Conheci Virson na faculdade, onde falávamos mal de esquerdistas e reacionários e víamos todos os filmes cults da época, que sobravam em inúmeros cinemas vazios (por isso fecharam, fime cult ninguém vê).

Virson é a referência e a base de alguns personagens meus, como o conde que vive no ermo num castelo cercado por quilômetros de uma hinterland oculta, e o bom vivant Alípio, do meu romance Universo Baldio, que recentemente foi lido por outro amigo, Antenor Nascimento, com quem trabalhei na redação da Istoé. Antenor é o chamado puta texto, uma elite de centroavantes da linguagem muitas vezes desconhecida do público, mas que formam, mesmo sem querer, uma confraria secreta, que se entende por sinais a distância.

Numa carta recente, Antenor lembra as redações clássicas, onde vivemos por décadas: “Quanto àquela época, foi uma das melhores. Não por causa do trabalho, claro, mas de tantos amigos bons. E, além disso, foi um tempo em que ainda podíamos fumar, beber e falar da vida alheia sem a censura dos chatos que existem hoje. Sabe, né? Os bambis, os dumbos, a disneylândia inteira que brotou de repente. Nos meus últimos dias numa redação, a garotada toda usava camiseta debaixo da camisa e ninguém -- ninguém -- saía pra tomar um drinque depois do fechamento. Odiavam o ar condicionado da minha sala. É uma geração que sente frio, mesmo no verão.”

Recuperei o contato com Antenor, que comentou já O Refúgio do Príncipe, postado aqui (na seção Retorno). Desta vez, ele fala sobre meu romance, num depoimento que transcrevo a seguir. Do Virson Holderbaum, publico na sequência uma crônica sobre seu querido Avaí, a sensação atual do Brasileirão. Virson vê o fantasma de Nelson Rodrigues pontificando sobre o milagre do time que saiu da lanterna e hoje está encostando nos líderes. Como costumo sempre publicar textos meus, é bom lembrar que nesta edição, existem dois autores assinando. Se reproduzirem os textos, atenção para os créditos!

ENCONTRO FUGAZ COM O FANTASMA DE NELSON
NA NOITE FRIA DA RESSACADA


Virson Holderbaum

O jogo já terminara e eu me encaminhava para a saída quando vi aquela figura pachorrenta, cigarro fumegando entre os dedos, a contemplar o gramado vazio.

Parado, fixei o olhar naquele terno escuro, achando que era algum sósia, mas não, ele estava lá mesmo, idêntico, com o mesmo olhar bovino a ruminar seus mais sórdidos personagens de “Bonitinha, mas ordinária” e “Os Sete Gatinhos”.

Já sabem de quem estou falando. Por mais absurdo que possa parecer, lá estava eu, no estádio silencioso, diante do fantasma de Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico.

Pensei até em saudá-lo com uma expressão jocosa, tipo “e aí, cara, descansando à sombra das chuteiras imortais!”, para quebrar o gelo, mas achei melhor não arriscar. Ele poderia me virar a cara, me esnobar, me ignorar, ou pior, desaparecer de vez.

Cheguei mais perto e me sentei a umas quatro cadeiras dele, na mesma fileira. Então ele se virou pra mim e disse com o olhar “sampaku” e a inconfundível voz arrastada:

- O futebol do Avai é uma reinvenção surgida do Nada Absoluto só para contrariar os comentaristas de abobrinhas e emudecer o ego doentio das grandes torcidas. Ái de vós corintianos e flamenguistas de botequim! Esse timinho que não valia uma nota de 10 reais está jogando um futebol luxuoso como sofá de marquês.”

Tossiu devagar e calou-se.

Não havia mais dúvidas. Era mesmo ele. Ou o fantasma dele.
Virou-se novamente na minha direção, e sem me olhar, continuou:

- Faz pouco debochavam desse time dando gargalhadas convulsivas. O Avaí era a Tartaruga Sentada no Poste da Série A. Ninguém sabia como tinha chegado lá mas todos sabiam que ia descer. Pois agora eu digo que a tartaruga criou asas e voa altaneira sobre todos os postilhões da primeira divisão. Eu saúdo a Tartaruga Voadora da Ressacada. Longo futebol a esse Possesso Redivivo que vocês chamam de Muriqui.

Tossiu mais uma vez enquanto esmagava o toco do cigarro com a sola do sapato. Foi se levantando vagarosamente, ajeitou o casaco no ombro, a camisa branca de linho semi-aberta no peito. Já passava da meia noite, o sereno congelava as cadeiras de plástico do estádio mas o fantasma de Nelson não sentia frio nenhum, como se fosse um Vampiro da Transilvânia.

Fomos caminhando devagar em direção a saída, eu na frente, ele um pouco atrás. Me distraí imaginando como estaria o trânsito no Trevo da Seta e quando meu pensamento voltou me dei conta que a figura de terno escuro já tinha desaparecido.

A MAIS RETA LINHA DA VERDADE

Antenor Nascimento

"Caro Nei. Vou resumir aqui o que achei de Universo Baldio. Deixo de lado a beleza da linguagem; você já conhece a minha opinião.

Li a carta do Raduan Nassar. Discordo dele. Embora o Segundo Tempo seja excelente, e muito bem coordenado com o primeiro, foi a República de Itaguaçu o que me emocionou mais. A história sangra. Comove. Lendo esse texto sincopado (como diz o Nassar), a gente mergulha no pesadelo dos anos 70.

Você traça o retrato exato de uma geração cujos sonhos (e os propósitos) foram cortados com um canivete rombudo. Os personagens da casa-cor-de-rosa são desordenados, desorientados, incongruentes. Perturbadores. Figuras do limbo.

Eu não vivi esse tempo, pelo menos como adulto – o meu relacionamento com a ditadura do general Médici começou em 1974, quando quase fui expulso do Colégio Olavo Bilac por causa de uma discussão com a professora de Patriotismo (na época, a matéria se chamava Educação Moral e Cívica) sobre a revolução. Mas conheci vários dos caídos de 1968-1970 e, na medida em que isso é possível, também vivi a experiência dessa época calcinada.

As doze síncopes do Primeiro Tempo abrem essa ferida sem piedade. Já li vários livros que raspam esse tema. Nenhum deles vai ao drama central, que é o das pessoas. O teu é o primeiro. É uma pintura de Goya.

Sobre o Segundo Tempo. Esse diálogo com o fantasma, que traz de volta a infância e que faz Luís livrar-se e encontrar o seu refúgio numa viagem que acaba em alto-mar, toca a gente de outra maneira. Ele faz refletir. Veja. Fiquei eu aqui, na minha mesa velha, numa tarde de domingo, imaginando uma conversa com meu avô. Lembra? O tenente da Força Pública. Ele me dizia: Você acha que fez grandes coisas, macaco? Só porque escreveu algumas gozações? Eu cacei jagunço no noroeste de São Paulo, salvei gente na trincheira de Piquete, criei teu pai e, quando fiquei cego, não dei um pio de reclamação.

Anotei frases perfeitas. Lá vai: 1. ...colecionava detritos verbais no bolso da camisa...2. Mas é guri mesmo. Tem quase cem anos e morre de medo do pai. Vai te lasquear. 3. Continuas malcriado, mas pelo menos aprendeste a me chamar de general.

Por fim, Nei, duas outras coisas que me dizem algo muito forte, embora eu não saiba exatamente o quê. Primeiro, o 38 em cima da mesa – aquele que também aparece em Refúgio do Príncipe. Segundo, a palavra travada, que não se desata, a não ser no fim: o filho, ou o mar.

Esse é o melhor serviço dos escritores. Você lê e sente, mas é um sentimento tão enterrado que a gente não consegue pescá-lo para a razão.

Isto aqui não é um panegírico, nem uma cortesia de amigo. Como dizia o meu avô em momento de solenidade, é a mais reta linha da verdade.

RETORNO – 1. Imagem desta edição: Batalha do Avaí, de Pedro Américo. Assim, ilustro duas paixões dos nossos escritores homenageados de hoje: a palavra Avaí ligada à luta pela vitória, tema de Virson, e a história militar, um dos hobbies de Antenor. 1. Vimos como a leitura de Antenor é pura literatura, de escritor que estoca também seus fantasmas. Queremos mais textos teus, Antenor, sobre tuas vivencias, lembranças, andanças. 2. Virson está animado: “Estou lutando pra terminar as memórias. Estive na serra gaúcha onde vivi infância e adolescência, reencontrei pessoas da época, foi emocionante. Trouxe mais material e mais trabalho.Ah, e estou fazendo blog!”

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