2 de dezembro de 2008

MORROS


Nei Duclós (*)

Casa e morro são mistura de pedra e barro, só que nenhum deles foi feito para suportar o dilúvio. Menos ainda quando as imposições da laje e do concreto substituem a cobertura vegetal, oferecendo ao relento as piores perspectivas, confirmadas pela tragédia que despencou em Santa Catarina. Aqui é a terra dos morros e das casas do Brasil profundo, aquelas vistas à distância que despertam a vontade de morar nelas. O aspecto bucólico, silencioso, pacífico dos recantos que bordam as estradas desta paisagem é o alvo dos sonhos produzidos pelos estressados da hiper-urbanidade.

Quem vem de São Paulo, por exemplo, abandona um pesadelo de fuligem e metais, cruza a BR-116 por uma serra hostil, e enfim é recepcionado pelas rendas enfileiradas de cordilheiras baixas. Essa pintura derreteu quando os laboratórios da água conseguiram separar poeira e brita e jogaram uma parede de espantos na cidadania em pânico. O morro, símbolo do ambiente amigável, tornou-se sepultura de gente, casas, ruas, bairros, cidades inteiras. Pois não houve apenas inundação, enchentes. Houve a grande surpresa: uma parte importante do cartão postal implodiu, e rolou sobre pessoas e pistas.

No lugar de um terreno, um brejo; de uma edificação, ruínas; de um caminho, paredões surgidos do nada, com estrondo. Como se as entidades que segurassem os morros cometessem suicídio coletivo. Como se fosse uma emboscada, em que os atentados seriam de espíritos sinistros de outras dimensões a fazer tabula rasa da geografia, eliminando um por um esses sentinelas de vales, esses seguradores de vilas, esses guardiões de praias.

Morros que segredam trilhas, conduzem barcos, escondem ninhos, geram vagalumes. Morros que servem de refúgio, onde os duendes meditam, as fadas se inspiram, os poetas se abrigam. Por trás dos morros existia a imensidão do mundo desconhecido. Em muitos pontos do estado marcado pela dor, agora não existe mais nada. Nasce um novo temor, o do morro que ameaça, a prometer avalanches quando deveria apenas reproduzir o eco de nossos acenos.

Sobram ainda muitos, que merecem tratamento melhor, à altura do que enxergamos neles: a paz, que nos falta, a emoção, que foge para longe.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 2 de dezembro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: pescador solitário, foto de Miguel Duclós. Praia ao entardecer, morros ao fundo: a paisagem que devemos preservar.

BATE O BUMBO - Recebo o seguinte e-mail sobre meu texto Galo Inventa a Manhã, publicado originalmente no Caderno Variedades do Diário Catarinense e reproduzido aqui, no meu site e no portal cultural Cronopios (cada vez melhor): "Professor, belíssimo o seu texto no Cronópios. Um aula de ficção-não-ficção. Aprendo sempre. Um abraço de estima". Germano Xavier. Iraquara-BA.

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