Nei Duclós (*)
Vi a coruja na ponta do telhado. Vertical, fazendo pose no entardecer. O periscópio do olhar transmite a impressão de corpo retorcido, fora de prumo. Ela apenas está atenta, girando a cabeça enquanto o corpo, imóvel, imita uma espiral. Seu canto é o silêncio, a sabedoria dos ouvintes. Calada, como fruto em fim da feira, exibe a presença descartável quando acendem as luzes da aldeia. Quase não se vê o vulto que se apaga como as ilustrações de livros obscuros. Mas ela está lá. Seu segredo é que nada anuncia.
Ela se encerra, como um cofre de vime. Guarda-se em penas, desenhos mortos, pincéis de espinhos. A coruja trafega no lusco-fusco das celebrações ocultas. Existia antes do telhado, antes mesmo do terreno baldio cercado, antes do século, da História, da trilha. Já montava guarda quando nem pátria existia. Compartilhava o assombro dos habitantes do trovão, da nudez dos gigantes, das pedras trabalhadas em alfabetos perdidos. Percebia os invasores armados de velas, sabres, varíolas. Sabia o desfecho, já que pousa no telhado há uma eternidade.
Eu a conheço porque se identifica. Não que pronuncie seu nome ou faça algum gesto repetido. É porque habitamos esse chão comum do universo imperfeito. Temos noção exata do pensamento um do outro. Já fervemos em caldeirões, escapamos de armadilhas, sobrevoamos lobos. Agora jogamos no mesmo time.
Imagino tudo, menos o fato de que continua ali, na véspera dos fogos. Talvez não seja o mesmo exemplar que incendiou os antigos. Mas é feita da mesma natureza, obedece ao impulso que a gerou. É um modelo de criatura que se reproduz na posição ereta das efígies. Lembra um signo, representando alguma nação que perdemos. Ou será o anúncio dos parentes que chegam novamente para ver a festa?
Na quina, avessa ao mundo, a coruja esconde um labirinto. Ao primeiro estrondo, ela voa em curva, como se um gesto imaginário desenhasse a linha de sua desistência. Mas um duende permanece, mesmo que o sol rebente e a noite seja devorada na fervura das estrelas. A coruja é o verão, ambiente de sonhos. O Ano Novo é apenas o guardião de sua asa, fio de suas garras, brinco de realeza.
RETORNO 1. Imagem desta edição: Mascote, foto de Elaine Borges. Achei que tem tudo a ver com a crônica, apesar de o pássaro que está na beira do barco não ser uma coruja. Mesmo que fosse outro texto, esta seria a ilustração. Foto absolutamente magnífica da grande jornalista que aportou aqui na ilha há décadas. 2. (*) Crônica publicada hoje, dia 30 de dezembro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.
Vi a coruja na ponta do telhado. Vertical, fazendo pose no entardecer. O periscópio do olhar transmite a impressão de corpo retorcido, fora de prumo. Ela apenas está atenta, girando a cabeça enquanto o corpo, imóvel, imita uma espiral. Seu canto é o silêncio, a sabedoria dos ouvintes. Calada, como fruto em fim da feira, exibe a presença descartável quando acendem as luzes da aldeia. Quase não se vê o vulto que se apaga como as ilustrações de livros obscuros. Mas ela está lá. Seu segredo é que nada anuncia.
Ela se encerra, como um cofre de vime. Guarda-se em penas, desenhos mortos, pincéis de espinhos. A coruja trafega no lusco-fusco das celebrações ocultas. Existia antes do telhado, antes mesmo do terreno baldio cercado, antes do século, da História, da trilha. Já montava guarda quando nem pátria existia. Compartilhava o assombro dos habitantes do trovão, da nudez dos gigantes, das pedras trabalhadas em alfabetos perdidos. Percebia os invasores armados de velas, sabres, varíolas. Sabia o desfecho, já que pousa no telhado há uma eternidade.
Eu a conheço porque se identifica. Não que pronuncie seu nome ou faça algum gesto repetido. É porque habitamos esse chão comum do universo imperfeito. Temos noção exata do pensamento um do outro. Já fervemos em caldeirões, escapamos de armadilhas, sobrevoamos lobos. Agora jogamos no mesmo time.
Imagino tudo, menos o fato de que continua ali, na véspera dos fogos. Talvez não seja o mesmo exemplar que incendiou os antigos. Mas é feita da mesma natureza, obedece ao impulso que a gerou. É um modelo de criatura que se reproduz na posição ereta das efígies. Lembra um signo, representando alguma nação que perdemos. Ou será o anúncio dos parentes que chegam novamente para ver a festa?
Na quina, avessa ao mundo, a coruja esconde um labirinto. Ao primeiro estrondo, ela voa em curva, como se um gesto imaginário desenhasse a linha de sua desistência. Mas um duende permanece, mesmo que o sol rebente e a noite seja devorada na fervura das estrelas. A coruja é o verão, ambiente de sonhos. O Ano Novo é apenas o guardião de sua asa, fio de suas garras, brinco de realeza.
RETORNO 1. Imagem desta edição: Mascote, foto de Elaine Borges. Achei que tem tudo a ver com a crônica, apesar de o pássaro que está na beira do barco não ser uma coruja. Mesmo que fosse outro texto, esta seria a ilustração. Foto absolutamente magnífica da grande jornalista que aportou aqui na ilha há décadas. 2. (*) Crônica publicada hoje, dia 30 de dezembro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.
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