Nei Duclós
Vamos a um exemplo da miséria jornalística. Saiu hoje na Folha: “Nilmar acertaria pouco depois a trave em uma cabeçada, porém estava impedido. No outro lado, saiu gol de quem não estava impedido. Boselli desviou de cabeça para o gol após uma cobrança de falta. Ele estava em posição legal, mas o bandeirinha anulou o lance equivocadamente porque outro jogador do Estudiantes que não tocou na bola estava impedido.” Quer dizer, vai escrever mal assim no Caixa Prego, seja lá isso onde for. Em quatro frases toscas, três vezes a palavra impedido. Depois reclamam que não compram mais jornal, que sobra na banca. A conquista ontem do Internacional, sobre o Estudiantes, da Copa Sul Americana, no Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, merece algo à altura do jogo, não para celebrar ninguém nem nada, mas porque é uma chance de mergulharmos nessa cultura desconhecida, o futebol.
Vamos pensar assim: foi, até o gol decisivo, na prorrogação, com todas as letras e terrores, um Maracanazo (aquela vitória fatal da cultura hispânica nas fuças do Brasilzão cheio de si). Sim, o otimismo colorado defrontou-se com a barreira argentina e quase foi tudo por água abaixo. Não fosse o lance de sete toques, a história seria outra. Escrevo de memória: o chute veio do escanteio, surge a cabeçada, sobra para o atacante, que chuta sobre o goleiro, obrigado a fazer uma defesa impossível, quando a bola, para desespero da nação colorada, raspa no travessão; mas, felizmente, ela despenca no miolo da área tomada pela guerra declarada, no território minado de todas as fraquezas e bravuras, no lugar onde os corpos se misturam porque se estraçalham na vontade de vencer a qualquer custo, mesmo que seja o último grito sobre a terra.
Mais dois toques e pronto, Nilmar coloca para o fundo do gol. Foi épico, foi emocionante, foi uma lavada de alma. A torcida, que tinha embarcado no buraco negro formado pela implosão do jogo no tempo normal, desencadeou-se como uma tempestade, um tornado, um tsunami, uma inundação. A maré vermelha sangrou na pátria em chamas, varreu as arquibancadas e depois derramou-se sobre o campo, num choro de vitória que já se contava perdida.
Mas como não torço atualmente para time nenhum, a não ser para o Uruguaiana e o Guarani lá da minha terra, não vou alimentar o preconceito de que escrever sobre futebol precisa de hipérboles e emoções à flor da pele. Nada disso. Quero falar sobre o Maracanazo passageiro, pois aprendi que o futebol é jogado fora de campo. Isso mesmo. Nada a ver com psicologia de massa nem nada. Simplesmente faz parte da natureza do futebol. É quase parecido com aquela insistência de Parreira de que o Brasil precisa aprender a jogar sem a bola. O estranhamento fica maior quando vemos que o Brasil precisa aprender a jogar fora do campo, que é onde se decidem os campeonatos.
Pensem comigo. O que faz um time ser grande? O dinheiro, em primeiro lugar. Tem dinheiro rolando na grama? O patrimônio, o número de torcedores, a qualidade dos jogadores. Tudo isso existe antes de começar a partida. Não quer dizer que não faça parte do futebol. Ao contrário. Isso é o futebol. O resto, os noventa minutos, é lance de dados, senão o Fluminense estaria entre os primeiros, já que decidiu a Libertadores e não, como está agora, na zona do rebaixamento. O Fluminense perdeu fora do campo. Não foi o fato de dançar no último segundo. Foi dançar depois do último segundo, foi ter morrido depois daquela partida. Ou seja, depois, fora do jogo.
Ontem, a mesma coisa. O futebol, em tese, tinha se decidido antes do jogo. O Internacional tinha a vantagem. Merecia levar a taça, para completar sua série de troféus. Precisava dar o troco no Grêmio, que está na cola do São Paulo na decisão do Brasileirão. Tudo isso muito lógico. Ou seja, o Colorado estava jogando futebol fora do futebol. Esqueceu que os argentinos são craques nesse assunto (e, tempos atrás, os uruguaios, campeões do mundo em 1950).
Os argentinos são especialistas em dar cama-de-gato no gigante. Contam com sua ferrenha unidade nacional, sua determinação, sua certeza de que são os melhores do mundo em tudo. Nada pode contra essa avassaladora cultura argentina, que está sempre certa, sempre dentro da lógica, sempre acima, sempre melhor, maior e não sei mais o quê. Quando perdem, sempre há uma explicação, pois jamais abandonarão sua natureza hegemônica. Esse é o lance decisivo do futebol argentino jogado fora de campo, onde se decide o futebol (tanto é que têm mais títulos disputados no continente). Eles se armaram para estragar a festa (pode-se argumentar: mas isso todo mundo faz; só que os argentinos são mestres desse ofício). Eles criaram uma rede de intrigas dos corpos que iriam entrar em movimento. Contavam também com a sorte, que costuma se entregar às almas determinadas. A sorte tem medo de quem a desafia.
Há sempre um demiurgo nessa cultura estraga-prazeres. Em 1950 foi Obdulio Varella, ontem foi Verón. O demiurgo chama para si a responsabilidade e atrai a falta de sorte adversária assumindo o papel imaginário de herói. Verón caía como se estivesse num filme de capa e espada, jogava para a platéia, o time colorado. Os brasileiros prestam atenção demais nos heróis adventícios, numa espécie de complexo de culpa compulsiva de que não merece ser o maior, já que é, de fato, o maior. Já que o Brasil é mais, e isso não é justo, então os outros reivindicam esse papel. Jogam fora do futebol. Dizem: “Não, mais somos nós! Quer ver?”
E aí acontece a implosão. O time, os torcedores, a crônica esportiva, a diretoria, todo mundo brilhava como uma supernova. De repente, diante do time adversário,descobriram que eram uma estrela anã, estavam prestes a implodir, cair em sim, gerar um buraco negro. E foi o que ocorreu. O estádio murchou enquanto os argentinos celebravam o gol como se tivessem cometido um assassinato. Sorte que o futebol se decide fora do jogo. Sim, fora. Porque a prorrogação não é mais o jogo, é o plus, é a oportunidade de revanche. Funciona como fresta para mundos desconhecidos, como o crepúsculo.
A bola, como o sol que se recolhe, decide, no último minuto, desencadear uma torrente de luz. Foi aí que o Internacional voltou a brilhar. Merecidamente. Contrariou a previsível derrota, a perspectiva dos pênaltis, entre outros pesadelos, e venceu com o que tinha em campo: a garra, a coragem, a sorte, a insânia. Foi assim, meus queridos abnegados do futebol, que o Colorado meteu a mão na taça e Nilmar foi carregado em triunfo. Porque, no final dos 120 minutos, ficou provado que esse foi o melhor time do torneio e portanto deve, com todas as honras, sair às ruas vestindo sua camisa vermelha.
Assim é que é: quando achamos que pegamos a embocadura do futebol, ele nos escapa e cumpre à risca a percepção tradicional sobre esse jogo, um exercício que só pode ser praticado e assistido pelos espíritos livres.
Vamos a um exemplo da miséria jornalística. Saiu hoje na Folha: “Nilmar acertaria pouco depois a trave em uma cabeçada, porém estava impedido. No outro lado, saiu gol de quem não estava impedido. Boselli desviou de cabeça para o gol após uma cobrança de falta. Ele estava em posição legal, mas o bandeirinha anulou o lance equivocadamente porque outro jogador do Estudiantes que não tocou na bola estava impedido.” Quer dizer, vai escrever mal assim no Caixa Prego, seja lá isso onde for. Em quatro frases toscas, três vezes a palavra impedido. Depois reclamam que não compram mais jornal, que sobra na banca. A conquista ontem do Internacional, sobre o Estudiantes, da Copa Sul Americana, no Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, merece algo à altura do jogo, não para celebrar ninguém nem nada, mas porque é uma chance de mergulharmos nessa cultura desconhecida, o futebol.
Vamos pensar assim: foi, até o gol decisivo, na prorrogação, com todas as letras e terrores, um Maracanazo (aquela vitória fatal da cultura hispânica nas fuças do Brasilzão cheio de si). Sim, o otimismo colorado defrontou-se com a barreira argentina e quase foi tudo por água abaixo. Não fosse o lance de sete toques, a história seria outra. Escrevo de memória: o chute veio do escanteio, surge a cabeçada, sobra para o atacante, que chuta sobre o goleiro, obrigado a fazer uma defesa impossível, quando a bola, para desespero da nação colorada, raspa no travessão; mas, felizmente, ela despenca no miolo da área tomada pela guerra declarada, no território minado de todas as fraquezas e bravuras, no lugar onde os corpos se misturam porque se estraçalham na vontade de vencer a qualquer custo, mesmo que seja o último grito sobre a terra.
Mais dois toques e pronto, Nilmar coloca para o fundo do gol. Foi épico, foi emocionante, foi uma lavada de alma. A torcida, que tinha embarcado no buraco negro formado pela implosão do jogo no tempo normal, desencadeou-se como uma tempestade, um tornado, um tsunami, uma inundação. A maré vermelha sangrou na pátria em chamas, varreu as arquibancadas e depois derramou-se sobre o campo, num choro de vitória que já se contava perdida.
Mas como não torço atualmente para time nenhum, a não ser para o Uruguaiana e o Guarani lá da minha terra, não vou alimentar o preconceito de que escrever sobre futebol precisa de hipérboles e emoções à flor da pele. Nada disso. Quero falar sobre o Maracanazo passageiro, pois aprendi que o futebol é jogado fora de campo. Isso mesmo. Nada a ver com psicologia de massa nem nada. Simplesmente faz parte da natureza do futebol. É quase parecido com aquela insistência de Parreira de que o Brasil precisa aprender a jogar sem a bola. O estranhamento fica maior quando vemos que o Brasil precisa aprender a jogar fora do campo, que é onde se decidem os campeonatos.
Pensem comigo. O que faz um time ser grande? O dinheiro, em primeiro lugar. Tem dinheiro rolando na grama? O patrimônio, o número de torcedores, a qualidade dos jogadores. Tudo isso existe antes de começar a partida. Não quer dizer que não faça parte do futebol. Ao contrário. Isso é o futebol. O resto, os noventa minutos, é lance de dados, senão o Fluminense estaria entre os primeiros, já que decidiu a Libertadores e não, como está agora, na zona do rebaixamento. O Fluminense perdeu fora do campo. Não foi o fato de dançar no último segundo. Foi dançar depois do último segundo, foi ter morrido depois daquela partida. Ou seja, depois, fora do jogo.
Ontem, a mesma coisa. O futebol, em tese, tinha se decidido antes do jogo. O Internacional tinha a vantagem. Merecia levar a taça, para completar sua série de troféus. Precisava dar o troco no Grêmio, que está na cola do São Paulo na decisão do Brasileirão. Tudo isso muito lógico. Ou seja, o Colorado estava jogando futebol fora do futebol. Esqueceu que os argentinos são craques nesse assunto (e, tempos atrás, os uruguaios, campeões do mundo em 1950).
Os argentinos são especialistas em dar cama-de-gato no gigante. Contam com sua ferrenha unidade nacional, sua determinação, sua certeza de que são os melhores do mundo em tudo. Nada pode contra essa avassaladora cultura argentina, que está sempre certa, sempre dentro da lógica, sempre acima, sempre melhor, maior e não sei mais o quê. Quando perdem, sempre há uma explicação, pois jamais abandonarão sua natureza hegemônica. Esse é o lance decisivo do futebol argentino jogado fora de campo, onde se decide o futebol (tanto é que têm mais títulos disputados no continente). Eles se armaram para estragar a festa (pode-se argumentar: mas isso todo mundo faz; só que os argentinos são mestres desse ofício). Eles criaram uma rede de intrigas dos corpos que iriam entrar em movimento. Contavam também com a sorte, que costuma se entregar às almas determinadas. A sorte tem medo de quem a desafia.
Há sempre um demiurgo nessa cultura estraga-prazeres. Em 1950 foi Obdulio Varella, ontem foi Verón. O demiurgo chama para si a responsabilidade e atrai a falta de sorte adversária assumindo o papel imaginário de herói. Verón caía como se estivesse num filme de capa e espada, jogava para a platéia, o time colorado. Os brasileiros prestam atenção demais nos heróis adventícios, numa espécie de complexo de culpa compulsiva de que não merece ser o maior, já que é, de fato, o maior. Já que o Brasil é mais, e isso não é justo, então os outros reivindicam esse papel. Jogam fora do futebol. Dizem: “Não, mais somos nós! Quer ver?”
E aí acontece a implosão. O time, os torcedores, a crônica esportiva, a diretoria, todo mundo brilhava como uma supernova. De repente, diante do time adversário,descobriram que eram uma estrela anã, estavam prestes a implodir, cair em sim, gerar um buraco negro. E foi o que ocorreu. O estádio murchou enquanto os argentinos celebravam o gol como se tivessem cometido um assassinato. Sorte que o futebol se decide fora do jogo. Sim, fora. Porque a prorrogação não é mais o jogo, é o plus, é a oportunidade de revanche. Funciona como fresta para mundos desconhecidos, como o crepúsculo.
A bola, como o sol que se recolhe, decide, no último minuto, desencadear uma torrente de luz. Foi aí que o Internacional voltou a brilhar. Merecidamente. Contrariou a previsível derrota, a perspectiva dos pênaltis, entre outros pesadelos, e venceu com o que tinha em campo: a garra, a coragem, a sorte, a insânia. Foi assim, meus queridos abnegados do futebol, que o Colorado meteu a mão na taça e Nilmar foi carregado em triunfo. Porque, no final dos 120 minutos, ficou provado que esse foi o melhor time do torneio e portanto deve, com todas as honras, sair às ruas vestindo sua camisa vermelha.
Assim é que é: quando achamos que pegamos a embocadura do futebol, ele nos escapa e cumpre à risca a percepção tradicional sobre esse jogo, um exercício que só pode ser praticado e assistido pelos espíritos livres.
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