8 de dezembro de 2008

PARA QUE SERVE O CINEMA?


Nei Duclós

O cinema, soma de todas as artes, serve para humanizar o espírito exilado do talento (esse mistério da sabedoria). Imersos na barbárie, na luta pela sobrevivência, dedicados ao esporte de se eliminar mutuamente, vocacionados para a indiferença, centrados no egoísmo, os povos acumulam fome de transcendência, que só o cinema pode atender. As ditaduras costumam expulsar os seres humanos completos, os cineastas, normalmente vindos da estiva do teatro, da demência literária, do exílio das artes plásticas, que buscam refúgio em outros sistemas políticos, onde podem exercer sua grande arte até que novamente os grilhões de voltem contra eles, podando-os, destruindo ou desvirtuando suas obras ou implantado neles a desesperança que enfim vence, renegando o que fizeram para o limbo absoluto.

É o que aconteceu com alguns alemães refugiados do nazismo em Hollywood. Como Max Ophuls (que mais tarde voltou a filmar na Europa, sempre em busca da liberdade), autor de inúmeros filmes consideradíssimos, como Le Plaisir, de 1952, baseado em contos de Guy de Maupassant. Ou Ernst Lubitsch, o serial realizador de filmes inesquecíveis, que chegou a ter sua grande obra, Trouble in Paradise (Ladrão de Alcova), de 1932, submersa na censura até 1968, graças à perseguição promovida, a partir de 1935, pelo famigerado Código Hays (aquele que impunha a separação dos corpos no leito conjugal, o que me levava a acreditar que os americanos não dispunham de cama de casal). O DVD saiu há apenas cinco anos, em 2003.

Vi ontem Ladrão de Alcova e chovo no molhado, já que o filme é tido como um dos grandes até hoje: trata-se de trabalho maduro, hilário, encantador, radicalmente inovador, que denuncia a falsidade das elites, não só pelos costumes, as roupas, os gestos, as conversas, mas principalmente pelo que fazem para se tornar elite, ou seja, falcatruas, desvios de dinheiro, roubo puro e simples. A história é sobre um casal de ladrões que surrupia jóias e dinheiro de gente rica. Poderia ser apenas a abordagem cínica de uma evidência, a de que as pessoas são tungadas para garantir o luxo e a indolência dos milionários. Mas é muito mais.

É uma comédia ligeira, de diálogos cortantes, de ritmo alucinante (o roteiro, elogiadíssimo, é de Samson Richardson), que mostra (sem se entregar totalmente) como os princípios e sentimentos humanos podem atrapalhar os planos e objetivos da racionalidade a serviço da bandalheira. O ladrão é tão charmoso que faz a milionária apaixonar-se. A ladra é tão apaixonada, que finge renunciar ao butim. Os velhos são tão patéticos, que tentam confinar a juventude a seus hábitos preguiçosos. O dinheiro é tão fundamental que acaba ocupando um lugar coadjuvante na trama. Lubitsch nos mostra que a humanidade pode sobreviver no ambiente mais hostil e corrupto possível e que existe grandeza mesmo num servo (que para existir precisa renunciar a tudo) ou num larápio.

O que encanta no filme é essa sobrevivência da emoção em território arrasado. É possível encontrar representações do amor em jóias encontradas no lixo, é possível recolher o produto do roubo de cima de uma cama apenas para fazer uma desfeita amorosa, jamais para se locupletar na riqueza descartável. O que importa não é o produto do roubo, mas a vivência do coração nos redutos da superficialidade, da inveja, da falta de escrúpulos. O humanista Lubistch, como bom turrão, não dá o braço a torcer. Mas se trata de um sentimental, o que tenta fazer emergir de si, furando as camadas de decepção, a beleza do ser humano, vilipendiado por suas contingências, mas capaz de driblar destinos e reinaugurar algo parecido com a inocência, que tem a mesma graça e o mesmo sabor: exatamente o cinema, lugar onde somos infantes, amantes, levados, galantes.

Em Le Plaisir, Max Ophuls filma, em três episódios (ou contos) a relação que pode existir entre o prazer e o amor, o prazer e a inocência e o prazer e a morte. Imaginem essas cenas: na igreja lotada do interior, a câmara desce dos anjos do teto e cai sobre a multidão em prantos, que chora de emoção induzida pela presença chorosa de prostitutas, tocadas pela cerimônia da primeira comunhão da sobrinha de uma delas; o camponês que se apaixona pela garota do bordel se despede dela na estação, corre para seguir o trem e volta cabisbaixo, com sua carroça carregada de flores colhidas no caminho por ela e suas amigas; na praia prateada, um pintor leva na cadeira de rodas sua esposa, ex-modelo que tentou suicídio quando foi dispensada pelo marido, agora pagando o preço do sua culpa e arrependimento; enquanto isso, ao fundo, o mar, a areia e as crianças que levantam pipa compõem um quadro surrealista de grande impacto visual.

É pouco? É tudo. Do jeito que vai o cinema comercial, que não contrata nem sombra dos talentos que se desperdiçam no anonimato, daqui a pouco vão começar a distribuir filmes que metralham as platéias, para garantir audiência. É só o que falta. No lugar de enfrentar a indiferença natural dos seres humanos com arte, talento, inovação, eles se entregam às obviedades de suas sacadas marqueteiras, como se o povo gostasse de ser ludibriado. As grandes obras primas do passado, como essa duas que citei aqui, atraíam o povo para os cinemas. Mas a mediocriade invejosa destruiu tudo, para que ficássemos à mercê da brutalidade, sendo obrigados a considerar o que nos faz vítimas, dentro da atual lógica do estupro, em que você, além de ser violentado, ainda tem que dizer que gosta.

RETORNO - Imagem desta edição: cena de Le Plaisir, com Jean Gabin fazendo o papel de um campônio, pai de família, que recebe a visita avassladora de algumas mulheres da cidade grande, que vêm visitá-lo no interior.

BATE O BUMBO - Cidadãos exemplares atendem aos reclames do poeta e adquirem exemplares autografados de O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento. De Uruguaiana, a poeta Marina Fagundes Coello (que fez um poema a partir do conto principal do livro: "meu Príncipe é Rei/ recria seu reino/ com os fios invisíveis/ dos sonhos dos deuses/ e a terra e os homens/ do abismo/levitam/ um sopro que é brisa/ do todo e do nada/ renascida" ); de Piracicaba, Jacqueneide Santiago, além do atencioso leitor Paulo Renato, são os pioneiros da campanha. Basta me enviar um e-mail (neiduclos@hotmail.com), me dizendo o endereço, que eu digo em qual conta devem ser depositados os vinte reais, com frete incluído para todo o Brasil. Não se acanhem, sigam o exemplo. Aqui no centrinho da praia de Ingleses, na simpática e competente Livraria Mar e Letras, O Refúgio entrou em ritmo de Natal e está sendo oferecido neste preço de promoção (vinte reais). Agora é a hora. Faça um escritor sorrir e delicie-se com a prosa poética dessa seleta de mar e pampa.

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