Nei Duclós (*)
Palavra é como gente, possui mediunidade e, portanto, está propensa ao encosto. Sessentão, por exemplo, que serve para me definir a partir deste final de outubro, sempre traz ou trazia o adjetivo sacudido na garupa. Eu sabia (ou confiava) que chegaria aos 60, mas jamais imaginei ser um sessentão sacudido. Por muito tempo, a pobre da palavra portuguesa vinha, obrigatoriamente, acompanhada pela expressão “com certeza”. Não era só para rimar, era para definir uma identidade. Tudo o que é portuguesa ─ casa, família, mulher ─ tem ou tinha o com certeza junto. Hoje o com certeza tem vida própria, já que existe uma lei que obriga todo mundo a usá-lo.
Por décadas, não existia americano que não fosse tranqüilo, graças a um célebre livro de Graham Greene. Nem velha senhora que não fosse indigna, graças a Bertold Brecht. Morte, nos tempos áureos de Gabriel Garcia Marquez, era sempre anunciada , numa reprodução de massa que provocava a desconfiança de que todos os tituladores tinham surtado de vez. O pior era a cara de grande descoberta quando alguém “bolava” algo como “crônica de uma morte anunciada” para qualquer reportagem.
Já tivemos surtos de sonhos que acabavam todos os dias; e de anos que, ao contrário, jamais chegavam ao fim. Há casos graves que soterram conjugações de verbos toda a vez em que são invocadas. Diga-se, por exemplo, jamais poderá vir sozinha. É fundamental que seja acompanhada com o “de passagem”. O uso é tão excessivo que importante diretor de redação costumava bradar para as paredes: “Ninguém diz nada de passagem, as pessoas simplesmente dizem!”
O que impressiona é a resistência desses vícios, que voltam à tona ciclicamente. Quem chega aos 60 pode se desesperar se for identificado com algo como sacudido, dito por alguém de passagem, numa tirada de humor anunciado, o que nos faz querer fugir para o além mar, para uma casa portuguesa com certeza que irá nos acolher. O pesadelo maior será alguém chegar de microfone na mão e perguntar como é que “você se sente” chegando aos sessenta, e como é “essa coisa” de ficar assim, digamos, velho. São ameaças que devemos nos prevenir criando respostas rápidas e malcriadas. Espero não ter de usá-las.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 28 de outubro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: em 2002, quando fez "O Americano Tranqüilo", Michael Caine, nascido em 1933, ainda era um sessentão sacudido. Continua em plena forma, como vimos recentemente em "O Cavaleiro das Trevas".
Palavra é como gente, possui mediunidade e, portanto, está propensa ao encosto. Sessentão, por exemplo, que serve para me definir a partir deste final de outubro, sempre traz ou trazia o adjetivo sacudido na garupa. Eu sabia (ou confiava) que chegaria aos 60, mas jamais imaginei ser um sessentão sacudido. Por muito tempo, a pobre da palavra portuguesa vinha, obrigatoriamente, acompanhada pela expressão “com certeza”. Não era só para rimar, era para definir uma identidade. Tudo o que é portuguesa ─ casa, família, mulher ─ tem ou tinha o com certeza junto. Hoje o com certeza tem vida própria, já que existe uma lei que obriga todo mundo a usá-lo.
Por décadas, não existia americano que não fosse tranqüilo, graças a um célebre livro de Graham Greene. Nem velha senhora que não fosse indigna, graças a Bertold Brecht. Morte, nos tempos áureos de Gabriel Garcia Marquez, era sempre anunciada , numa reprodução de massa que provocava a desconfiança de que todos os tituladores tinham surtado de vez. O pior era a cara de grande descoberta quando alguém “bolava” algo como “crônica de uma morte anunciada” para qualquer reportagem.
Já tivemos surtos de sonhos que acabavam todos os dias; e de anos que, ao contrário, jamais chegavam ao fim. Há casos graves que soterram conjugações de verbos toda a vez em que são invocadas. Diga-se, por exemplo, jamais poderá vir sozinha. É fundamental que seja acompanhada com o “de passagem”. O uso é tão excessivo que importante diretor de redação costumava bradar para as paredes: “Ninguém diz nada de passagem, as pessoas simplesmente dizem!”
O que impressiona é a resistência desses vícios, que voltam à tona ciclicamente. Quem chega aos 60 pode se desesperar se for identificado com algo como sacudido, dito por alguém de passagem, numa tirada de humor anunciado, o que nos faz querer fugir para o além mar, para uma casa portuguesa com certeza que irá nos acolher. O pesadelo maior será alguém chegar de microfone na mão e perguntar como é que “você se sente” chegando aos sessenta, e como é “essa coisa” de ficar assim, digamos, velho. São ameaças que devemos nos prevenir criando respostas rápidas e malcriadas. Espero não ter de usá-las.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 28 de outubro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: em 2002, quando fez "O Americano Tranqüilo", Michael Caine, nascido em 1933, ainda era um sessentão sacudido. Continua em plena forma, como vimos recentemente em "O Cavaleiro das Trevas".
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