Nei Duclós (*)
Extra: Veja abaixo, na seção Retorno, a repercussão desta crônica entre leitoras do Donna DC, do Diário Catarinense.
Desatenção talvez seja o maior pecado do comércio. Nos pequenos estabelecimentos, a indiferença se manifesta pelo espírito de grupo, autocentrado e impermeável a interferências. Conversar entre si, deixando o cliente parado à espera de atendimento, cobrar no caixa sem olhar quem está pagando, varrer os pés da vítima que tenta consumir alguma coisa são alguns exemplos dessa expulsão involuntária promovida pelos que deveriam estender tapete vermelho. O pior é o olhar de “tu-por-aqui?” quando você chega na loja familiar e os proprietários estão ocupados em colocar a conversa em dia. Deveria haver um buraco onde o cliente pudesse se enfiar por alguns momentos, até passar o efeito devastador que a virada coletiva e silenciosa de cabeça em sua direção provoca, como a perguntar os motivos para a presença estranha em território sagrado.
Nas grandes corporações, o expediente é o famoso olho branco, o treinamento corporativo “tiau-pra-ti”, como dizem em Porto Alegre. Ausência ou as costas são os fatos mais comuns nos vestíbulos imensos e cheios de mercadorias, em que a migalha de uma orientação é negada pela falta absoluta de funcionários visíveis. Você é filmado de todos os ângulos, deve haver uns 15 analisando teus gestos, mas nenhuma gentileza chega para te encaminhar à estante certa, dizer se a casa trabalha com determinado produto, ou simplesmente para informar o preço que está oculto em código. É um paradoxo, pois existem grandes investimentos no marketing de relacionamento, quando pagam os tubos para mostrar o gesto virtual solícito que inexiste ao vivo.
O único lugar realmente explícito, visível e à disposição dos clientes é o setor de pagamentos. Como não pode existir sintonia entre falta de atenção e dinheiro em caixa, é um mistério que as megalojas aumentem cada vez mais o faturamento. Talvez porque a população tenha crescido de forma geométrica, e os monopólios, em relação a essa demanda, mantenham ainda encolhidos de maneira brutal os espaços reservados para as vendas. Meia dúzia de grifes exibe um olhar olímpico, como a dizer que os incomodados se retirem para as ruas de comércio popular, onde a desatenção usa de outras armas. Como, por exemplo, a gritaria no ouvido dos passantes, as mentiras escrachadas sobre qualidade e preços e o falso charme da ignorância vestida pelo tom da esperteza.
É por isso que ganha força as negociações via internet, capaz de uma comodidade que falta aos espaços comerciais físicos. Tenho preferido esse tipo de intercurso, apesar das eventuais surpresas, como a megamagazine que nos deixou esperando um mês para fornecer um reles gabinete de cozinha e, quase esgotado o prazo, avisou que não tinha o dito disponível. O transtorno foi driblado pela promessa de devolução do dinheiro, não sem antes a empresa definir, como solicitação sua, a desistência que foi deles. Mas quem pode contra a linguagem burocrática engessada em inúmeros documentos?
Gosto de freqüentar livrarias, mas ultimamente minha preferência por obras antigas tem me empurrado cada vez mais para a rede. Comprei esses dias um exemplar caprichado, bem melhor do que outro, da mesma edição, que eu tinha perdido, de conteúdo detalhado e interessante: “Viagem Militar ao Rio Grande do Sul”, do Conde D`Eu. Reli o livro para revisitar a minuciosa geografia desse narrador aristocrático, que debocha o tempo todo dos maus hábitos riograndenses, a começar pelo excesso de luxo em aposentos desconfortáveis. Não perdoa a fraqueza dos cavalos gaúchos, tão famosos, denunciando o gasto excessivo em arreios e estribos de prata, em contraposição à economia absurda em cereais adequados à alimentação das montarias, uma necessidade urgente em plena Guerra do Paraguai.
Como esqueci a narrativa, lida muitos anos atrás naquele exemplar que sumiu, ainda não cheguei ao destino do Conde, que acompanhava o Imperador em direção à minha cidade natal, Uruguaiana, tomada pelo inimigo. Mas sei que, graças à competência de uma livraria de Goiânia, tenho em mãos uma raridade sobre História do Brasil, que ensina mais do que muita análise desatenta, idêntica ao mau comércio que não faz questão de nossa existência.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada neste domingo, dia 12 de outubro de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Charles Chaplin em Monsieur Verdoux.
3. " Senhor Nei, Adorei seu artigo de hoje: "Balcão de Pecados"! Além de oportuno e educativo, retrata bem nosso cotidiano no globalizado e inevitável mundo consumista. Eu, particularmente, me senti muito bem, pois concordo inteiramente com suas idéias ali expostas. Muitas vezes me questionei: será que estou ficando velha e chata? Estou me tornando uma "coroa" reclamona?
Na verdade, apesar de estar na casa dos cinqüenta anos e não me sentir tão velha quanto devem achar, tenho observado muito a mudança de hábitos de cortesia, tão ensinados e cobrados pelos pais da minha geração. Estes "modos" estão sumindo! E não estão em desuso apenas pelos jovens, mas pelos mais velhos (como eu) também!
Bom, não desejo, aqui, defender nenhuma tese. Apenas elogiar seu belo trabalho e ainda aproveitar para sugerir sua observação, reflexão e talvez um novo artigo sobre um ato corriqueiro e que me incomoda muito nos dias de hoje: a falta de privacidade, de respeito e de educação por que somos tratados nos caixas de supermecados. Pode-se observar que ninguém espera a sua vez: vão colocando as compras no balcão, em cima das mercadorias de quem está a frente, e ainda ficam "grudados" na hora do pagamento. Participam do valor a ser pago, da forma de pagamento e, se quiserem , conseguem até saber nome e telefone de que está sendo atendido. O bom senso me diz que devo aguardar minha vez no início do balcão, e esperar o cliente que está sendo atendido efetuar seu pagamento e retirar suas compras para, então, eu me aproximar do caixa. Será que estou sendo chata por me sentir incomodada com a "pressão da pressa" de quem está atrás de mim?
Agradeço sua atenção e volto a cumprimentá-lo por seu ÓTIMO artigo!" Kátia Ávila.
"Parabéns pela lucidez e sensibilidade tuas crônicas são maravilhosas em especial a do dia 3 de fevereiro desse ano e a de hoje." Sandra Sandrini.
"Prezado Nei! A tua crônica: Balcão de pecados, é a constrangedoura verdade deste nosso mundo tão desamoroso. Quando achamos mais conveniente fazermos compras pela Internet,é porque as relações humanas estão indo muito mal,com nossos semelhantes cada vez mais indiferentes ao convívio olho no olho. A Internet,a meu ver,deveria ser um recurso,não uma fuga desse mundo moderno e apressado. O pior é que tenho notado que pouco a pouco vai-se ficando sozinho. Abraço afetuoso e continue escrevendo com essa lucidez e senso crítico." Elisa Wenzel Luzzato.
Extra: Veja abaixo, na seção Retorno, a repercussão desta crônica entre leitoras do Donna DC, do Diário Catarinense.
Desatenção talvez seja o maior pecado do comércio. Nos pequenos estabelecimentos, a indiferença se manifesta pelo espírito de grupo, autocentrado e impermeável a interferências. Conversar entre si, deixando o cliente parado à espera de atendimento, cobrar no caixa sem olhar quem está pagando, varrer os pés da vítima que tenta consumir alguma coisa são alguns exemplos dessa expulsão involuntária promovida pelos que deveriam estender tapete vermelho. O pior é o olhar de “tu-por-aqui?” quando você chega na loja familiar e os proprietários estão ocupados em colocar a conversa em dia. Deveria haver um buraco onde o cliente pudesse se enfiar por alguns momentos, até passar o efeito devastador que a virada coletiva e silenciosa de cabeça em sua direção provoca, como a perguntar os motivos para a presença estranha em território sagrado.
Nas grandes corporações, o expediente é o famoso olho branco, o treinamento corporativo “tiau-pra-ti”, como dizem em Porto Alegre. Ausência ou as costas são os fatos mais comuns nos vestíbulos imensos e cheios de mercadorias, em que a migalha de uma orientação é negada pela falta absoluta de funcionários visíveis. Você é filmado de todos os ângulos, deve haver uns 15 analisando teus gestos, mas nenhuma gentileza chega para te encaminhar à estante certa, dizer se a casa trabalha com determinado produto, ou simplesmente para informar o preço que está oculto em código. É um paradoxo, pois existem grandes investimentos no marketing de relacionamento, quando pagam os tubos para mostrar o gesto virtual solícito que inexiste ao vivo.
O único lugar realmente explícito, visível e à disposição dos clientes é o setor de pagamentos. Como não pode existir sintonia entre falta de atenção e dinheiro em caixa, é um mistério que as megalojas aumentem cada vez mais o faturamento. Talvez porque a população tenha crescido de forma geométrica, e os monopólios, em relação a essa demanda, mantenham ainda encolhidos de maneira brutal os espaços reservados para as vendas. Meia dúzia de grifes exibe um olhar olímpico, como a dizer que os incomodados se retirem para as ruas de comércio popular, onde a desatenção usa de outras armas. Como, por exemplo, a gritaria no ouvido dos passantes, as mentiras escrachadas sobre qualidade e preços e o falso charme da ignorância vestida pelo tom da esperteza.
É por isso que ganha força as negociações via internet, capaz de uma comodidade que falta aos espaços comerciais físicos. Tenho preferido esse tipo de intercurso, apesar das eventuais surpresas, como a megamagazine que nos deixou esperando um mês para fornecer um reles gabinete de cozinha e, quase esgotado o prazo, avisou que não tinha o dito disponível. O transtorno foi driblado pela promessa de devolução do dinheiro, não sem antes a empresa definir, como solicitação sua, a desistência que foi deles. Mas quem pode contra a linguagem burocrática engessada em inúmeros documentos?
Gosto de freqüentar livrarias, mas ultimamente minha preferência por obras antigas tem me empurrado cada vez mais para a rede. Comprei esses dias um exemplar caprichado, bem melhor do que outro, da mesma edição, que eu tinha perdido, de conteúdo detalhado e interessante: “Viagem Militar ao Rio Grande do Sul”, do Conde D`Eu. Reli o livro para revisitar a minuciosa geografia desse narrador aristocrático, que debocha o tempo todo dos maus hábitos riograndenses, a começar pelo excesso de luxo em aposentos desconfortáveis. Não perdoa a fraqueza dos cavalos gaúchos, tão famosos, denunciando o gasto excessivo em arreios e estribos de prata, em contraposição à economia absurda em cereais adequados à alimentação das montarias, uma necessidade urgente em plena Guerra do Paraguai.
Como esqueci a narrativa, lida muitos anos atrás naquele exemplar que sumiu, ainda não cheguei ao destino do Conde, que acompanhava o Imperador em direção à minha cidade natal, Uruguaiana, tomada pelo inimigo. Mas sei que, graças à competência de uma livraria de Goiânia, tenho em mãos uma raridade sobre História do Brasil, que ensina mais do que muita análise desatenta, idêntica ao mau comércio que não faz questão de nossa existência.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada neste domingo, dia 12 de outubro de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Charles Chaplin em Monsieur Verdoux.
3. " Senhor Nei, Adorei seu artigo de hoje: "Balcão de Pecados"! Além de oportuno e educativo, retrata bem nosso cotidiano no globalizado e inevitável mundo consumista. Eu, particularmente, me senti muito bem, pois concordo inteiramente com suas idéias ali expostas. Muitas vezes me questionei: será que estou ficando velha e chata? Estou me tornando uma "coroa" reclamona?
Na verdade, apesar de estar na casa dos cinqüenta anos e não me sentir tão velha quanto devem achar, tenho observado muito a mudança de hábitos de cortesia, tão ensinados e cobrados pelos pais da minha geração. Estes "modos" estão sumindo! E não estão em desuso apenas pelos jovens, mas pelos mais velhos (como eu) também!
Bom, não desejo, aqui, defender nenhuma tese. Apenas elogiar seu belo trabalho e ainda aproveitar para sugerir sua observação, reflexão e talvez um novo artigo sobre um ato corriqueiro e que me incomoda muito nos dias de hoje: a falta de privacidade, de respeito e de educação por que somos tratados nos caixas de supermecados. Pode-se observar que ninguém espera a sua vez: vão colocando as compras no balcão, em cima das mercadorias de quem está a frente, e ainda ficam "grudados" na hora do pagamento. Participam do valor a ser pago, da forma de pagamento e, se quiserem , conseguem até saber nome e telefone de que está sendo atendido. O bom senso me diz que devo aguardar minha vez no início do balcão, e esperar o cliente que está sendo atendido efetuar seu pagamento e retirar suas compras para, então, eu me aproximar do caixa. Será que estou sendo chata por me sentir incomodada com a "pressão da pressa" de quem está atrás de mim?
Agradeço sua atenção e volto a cumprimentá-lo por seu ÓTIMO artigo!" Kátia Ávila.
"Parabéns pela lucidez e sensibilidade tuas crônicas são maravilhosas em especial a do dia 3 de fevereiro desse ano e a de hoje." Sandra Sandrini.
"Prezado Nei! A tua crônica: Balcão de pecados, é a constrangedoura verdade deste nosso mundo tão desamoroso. Quando achamos mais conveniente fazermos compras pela Internet,é porque as relações humanas estão indo muito mal,com nossos semelhantes cada vez mais indiferentes ao convívio olho no olho. A Internet,a meu ver,deveria ser um recurso,não uma fuga desse mundo moderno e apressado. O pior é que tenho notado que pouco a pouco vai-se ficando sozinho. Abraço afetuoso e continue escrevendo com essa lucidez e senso crítico." Elisa Wenzel Luzzato.
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