2 de julho de 2008

NOS BRAÇOS DO PAI

Quando faltava mistura, Jonathan dos Santos, de 18 anos, saía para caçar. Trazia para a mãe, Socorro, a carne silvestre abatida nos arredores de sua cidade, a Presidente Figueiredo, a 60 quilômetros de Manaus. Tinha aprendido com o pai, Edílson, tudo sobre a selva. Foi com esse motivo e esse conhecimento que ele se embrenhou na mata e desapareceu. A busca oficial encerrou seu expediente depois de três dias. Mas o pai não desistiu e encontrou o filho depois de quase dois meses. Quando viu o pai, Jonathan, ferido e debilitado, disse: “Estou em casa”. E morreu.

Disse, no fundo de sua dor e seu heroismo: Viu, pai, resisti, como você me ensinou. Agora vais cuidar de mim. Pois não vou deixar meu corpo atirado para as feras. Saí para caçar e não permiti que fosse caçado. Lutei cada dia, na solidão sem fim deste país abandonado. Porque se for para morrer de fome, aqui na terra da fartura, não será por omissão minha, porque eu fui à luta. Fui buscar o que faltava em casa, para te ajudar, pai, tu que briga por mim e vieste me salvar. Pois me salvaste, pai. Agora posso descansar.

O pai que foi em sua busca disse, no fundo: Filho, sei que estás vivo. Que estás rodeado de perigos, mas também de chances de sobrevivência. Quantas vezes falamos sobre essa possibilidade? Como se deve agir quando estamos perdidos, como esticar a vida até além do limite, como perseverar. Isolados neste ermo interminável, sem nenhum apoio, sem nada que nos conduza para uma vida melhor, devemos contar apenas com nossas próprias forças. Porque somos resistentes, meu filho, e o país é grande, hostil, mas é nosso. Nele encontramos o necessário para viver. Mesmo que isso nos custe a vida.

Nada se pode dizer diante do heroísmo do filho, o amor e a determinação do pai, a grandeza da briga por se manter vivo, a dor incomensurável da perda, a falta de recursos num lugar que deveria sobrar em tudo. Nada se pode dizer diante da mãe que viu seu filho sumir para sempre e testemunhar a insistência do marido, que jamais perdoou o destino e nunca se deu por vencido. Não se conformou e isso quase salvou a vida do seu filho. Foi por pouco, Edílson, foi por pouco, Socorro, foi por pouco, Jonathan.

Num país em que os jovens da tua idade, Jonathan, brigam por nada, apenas por excesso; que desperdiçam vidas e se envolvem em tragédias em troca de algumas horas de baladas; que vivem em quadrilhas, enquanto tu saía sozinho; que perderam o respeito e a compostura e invadem ruas e bares com sua opção explícita pelo mal; neste pobre país que abandona seus filhos e os destrói todos os dias, foste a resistência exemplar, Jonathan. Se não tem água, eu furo um poço, como diz o samba imortal de Zé Kéti. Se não tem carne, eu boto um osso na sopa e deixo andar.

Esta tragédia nos enche de vergonha, família Santos. Temos vergonha de chorar. Deveríamos fazer como sempre, virar o rosto para o outro lado. Mas estamos presos à notícia, suspensos no ar diante desse drama. Não porque seja insumo para nossa falta de assunto. Mas porque nos resgata o país que se foi para sempre. É o Brasil que sai sozinho na Amazônia cobiçada e mostra que lá existem brasileiros que ninguém enxerga. Vêem apenas minérios, biodiversidade e tudo o mais. Não olham para o povo, que tem sobrenome herdado dos tempos em que os padres batizavam os órfãos da guerra, colocando-os sob proteção de todos os santos.

Sim, Jonathan, você nos revela o Brasil que insistimos em desconhecer. Não por estares longe, na selva, mas porque estás dentro de nós e emerges como um náufrago que ainda luta para sobreviver. Queremos voltar para casa, para o país que amamos. Para esse pai, essa idéia de nação, que enfim nos acolhe. Nossa felicidade é tão imensa que morremos quando ele nos encontra. Fizemos nossa parte, pai. Não devíamos partir. Devíamos ficar, firmes, diante das ameaças. Mas o terror é maior do que nossa capacidade de resistir.

Talvez, se prestarmos atenção nos outros Jonathans, outros Edilsons, outras Socorros, poderemos descobrir o veio oculto da nação a qual pertencemos.

RETORNO - Imagem de hoje: Jardin des Tuileries, Paris, foto de Daniel e Carla Duclós.

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