30 de julho de 2008

GORKI: O GÊNIO OBRIGATÓRIO


Quem lê Máximo Gorki, não precisa ler mais nada. No terceiro volume de sua trilogia autobiográfica (sob todos os aspectos, uma impressionante obra-prima), intitulado Minhas universidades (os outros dois são: Infância e Ganhando meu pão, já comentados aqui), algumas cenas nos deslumbram pela contundência, pela precisão dos detalhes, pelo fragor da narrativa, pela atualidade. Fellini deve ter lido, pois a literatura de Gorki revela que estamos cercados pelo surrealismo, que a realidade é hiper-real, que os seres humanos são um mural de exceções, o que chamariam hoje de diversidade.

A mulher gordíssima que faz sexo com a vítima, amarrada a uma mesa, de um ritual satânico num covil de mendigos; o mujique que teve partido o crânio com uma marretada e jaz na beira do Volga com os olhos virados para o céu; os estudantes bizarros que convivem com a miséria do povo e fazem parte dela; os intelectuais ágrafos que orientam o autor sobre a morte e a fome: tudo em Gorki tem a grandeza do humano e enche de vergonha a literatura atual, tão metida a vanguarda, tão intimista e tão oca, tão sem nada a dizer.

Em poucas linhas, Gorki descreve sua tentativa de suicídio aos 19 anos, quando deu um tiro no coração e acertou o pulmão, tendo que pagar o mico de voltar ao trabalho um mês depois (um atentando que provocou nele a tuberculose; mais tarde, quase aos 70 anos, morreu de pneumonia). O que o salvou na juventude foi sua força física, já que ele mesmo era fruto da seleção natural promovida pela pobreza e o inverno russo. Condoído do jovem leitor de livros que tentara o suicídio, um revolucionário o leva para o interior do país e o engaja num projeto de preleção catequista aos camponeses. O tiro sai pela culatra, pois eles tentam eliminar os intermediários da produção de alimentos e acabam tendo que fugir da aldeia.

Não há realismo socialista nesta obra de Gorki. Não pode haver, portanto, motivos para as calúnias favoritas sobre ele. Gorki se engajou mais tarde no projeto cultural stalinista, pois esse era seu tempo e seu país. Mas sua literatura sobreviveu porque está resguardada de qualquer superficialidade ou artificialismo. Ele descreve o povo sem os equívocos de percepção que infletem sobre as pessoas miseráveis. Veio do ventre da velha Rússia, foi chibatado quando menino, recolhia lixo junto com outras crianças, como mostra a obra do cineasta Mark Donskoy nos anos 30. Nunca tinha ouvido falar de Donsky nem de sua filmagem da trilogia gorkiana. Mas conforme eu virava as páginas, via um filme se descortinando diante de mim. Tenho a maior curiosidade de ver a obra de Donsky. O que tem no you tube é muito pouco. Vou tentar comprar "The childhood of Maxim Gorky", que está disponível em dvd desde 2002.

Como não preciso ler mais nada, apenas Gorki, sigo seus passos no seu romance A Mãe. No início, em apenas duas páginas, está descrito um painel da vida operária da Rússia do século 19, sem nenhum retoque, apenas a brutalidade explícita de uma vida jogada fora, em que as pessoas não exibem virtudes, mas a extrema penúria e a ferocidade. Hoje, vemos como a miséria é aproveitada pelo pensamento dito politicamente correto, em que a escassez é mostrada como exceção a um ambiente asséptico. A própria reportagem (com jornalistas engravatados) representa o mundo clean e justo dos bem nascidos, enquanto a câmara foca as paredes roídas, os seres humanos carcomidos, as falas partidas, os rostos em pânico. Há exceções, como Profissão: Repórter, de Caco Barcelos, que foi ao ar nesta terça-feira mostrando o trabalho nas catacumbas do Brasil. Em Gorki, o narrador faz parte da paisagem, não está acima dela, é gerado nesse ninho. Não há escape na literatura monumental do gênio.

As universidades de Gorki são as pessoas. Nelas tenta decifrar os enigmas. Gente o invoca de todas as formas. Acha que estão escondendo algo, perdem o tempo e a vida em rotinas auto-destrutivas. Por toda parte onde vá, ele é o homem que lê, que tem chance de se livrar daquelas amarras. É tratado com pena pelos seus contemporâneos, que vêem nele o maior desperdício da nação rota que a todos devora. Mas ele conseguiu se superar. Não graças à revolução, do qual foi também crítico quando achou necessário e da qual, dizem, talvez tenha sido uma das vítimas, pois teria sido eliminado por Stalin. Mas graças ao seu talento, que nos subjuga como um sol recém nascido e nos leva para a grandeza da arte incomparável que é a literatura de quem sabe o que faz.

Leiam Maximo Gorki. Não é preciso ler mais nada. Façam como Tchecov, o mestre absoluto: quando lia Gorki, tinha vontade de dançar de alegria.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: cartaz do filme de Mark Donsky. Nascido em 1901, ele trabalhou com Eisenstein e morreu em 1981. Dirigiu 27 filmes. 2. "Minhas universidades" tem tradução e prefácio de Rubens Figueiredo e posfácio de Boris Schnaiderman. A trilogia foi relançada, em pacote primoroso, pela editora Cosacnaify.

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