1 de julho de 2008

IMPROVISO NA OBRA


Nei Duclós (*)

Dobrar o ferro em quadradinhos, para que, alinhados, sirvam de espinha dorsal para a coluna de concreto, é uma arte desenvolvida com poucos recursos. Primeiro, coloca-se duas escoras de madeira em forma de T fincadas no chão. Entre elas, estende-se uma tábua qualquer, que tenha alguns pregos lado a lado, desde que não formem uma fileira regular. Essa falta de alinhamento dos pregos é que vai fixar a barra de ferro colocada em cima da tábua. Pega-se então um cano de metal amassado na ponta, de tal forma que tenha uma abertura bem apertada. Isso permite que a fina barra de ferro seja capturada na extremidade tão estreita quanto um lápis. O cano serve de alavanca para ir entortando o ferro ao gosto da obra.

Trata-se de um torno bem brasileiro. As tábuas estão gastas e cheias de cracas de tanto uso. Os pregos, claro, enferrujados. Mas o serviço sai direito. O próximo passo é concretar as seis colunas. Para evitar excesso de custos, compra-se apenas a metade das tábuas, novas e retas, para construir três recipientes. Neles, coloca-se o cimento misturado à argamassa e brita. Introduz-se a composição de ferro em quadradinhos, saída do torno improvisado, desde que as pontas do ferro se sobressaiam na extremidade da futura coluna.

Deixa-se então o material secar e tomar aquela consistência indestrutível. Retira-se depois as tábuas para fazer as colunas restantes. As seis vão segurar um telhado e para isso é preciso furar com precisão milimétrica as grossas toras de madeira que vão sustentar a armadura do teto. Nesses furos vão entrar, sem que nada fique torto, as pontas de ferro deixadas de propósito para fora das colunas. “Se tivesse medido não daria tão certo” me diz o pedreiro-chefe. Trata-se de um blefe. Ele mediu tudo, mas tem razão quanto ao feeling: não basta o sistema decimal, é preciso saber intervir no lugar exato para que não haja problemas.

A mão-de-obra brasileira na construção civil, cada vez mais escassa pelo excesso de demanda, está sendo treinada nos padrões internacionais e de qualidade. Mas nas pequenas reformas, onde os contratos apalavrados levantam inúmeras edificações, ainda vigora o improviso e a criatividade. É essa percepção flexível, de tirar o máximo do mínimo de condições, que deslumbra empregadores estrangeiros, acostumados à rigidez e às exigências dos operários de outros países. O Brasil foi feito no muque e temos séculos de uma cultura que se apropria e transmite, pelas gerações afora, soluções cevadas na escassez.

No fundo, é um país em obras. Nas casas de material de construção, sempre lotadas, temos variados perfis de compradores, que manifestam suas personalidades logo quando entram. Quem vem atrás de areia , tijolo ou telha chega pisando duro, batendo a porta do carro, espalhando os pés por todos os lados e exigindo, só com os gestos, preferência e atendimento imediato. Quem tem dúvidas sobre o nome das ferramentas, pórticos, detalhes, exibe o ar de interrogação que faz de cada atendente um especialista em psicologia mineral.

Em geral, há um clima de identificação e curiosidade nessas populações que afloram nos balcões do ramo. Há euforia da realização. O fato de fazer acontecer algo numa nação que precisa tanto de trabalho, com tanto a construir, une proprietários e trabalhadores de obras. É o Brasil que anda enquanto os donos do país perdem tempo.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 1º de julho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Operários, de Eugênio de Proença Sigaud.

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