4 de junho de 2008

NO CORAÇÃO DA REPORTAGEM

Nei Duclós

A estréia de Profissão: Repórter como programa fixo, semanal, e fora do guarda-chuva de outros espaços (começou como quadro do Fantástico), nesta terça-feira, dia 4 de junho, depois dos intermináveis e insuportáveis "Casseta & Planeta" e "Toma lá Dá Cá", foi um acontecimento raro no atual estágio da imprensa brasileira. Abordando a fila dos transplantes de coração no Incor, em São Paulo, Caco Barcelos e sua jovem equipe mostrou como se faz jornalismo.

Ao cumprir um roteiro específico do assunto, de como funciona o trabalho dos médicos desse centro de excelência, que é o hospital público de maior prestígio e competência do país, Profissão: Repórter soube equilibrar o aspecto humano com o técnico, reproduzindo o clima épico da busca desesperada e consciente de salvação de vidas em risco, sem cair na pieguice ou na superficialidade.

Que emoção a da menina que está à espera de um coração ser recepcionada pela família de mulheres que foram festejar seu aniversário no hsopital! Que revelador a seqüência da fragilidade do esquema (por trabalhar com um órgão humano que viaja de um corpo a outro no mais curto espaço de tempo possível), em que o coração é transportado de helicóptero até chegar à sala de cirurgia. Quantos detalhes na delicada e arriscada operação que faz o coração alheio trabalhar no paciente terminal!

Mas o mais emocionante, o mais profundo, o mais impactante dessa reportagem, que deverá ganhar todos os prêmios, foi a colocação de um detalhe pessoal do repórter Caco Barcelos no miolo do drama: a lenta e dolorosa agonia do nosso amigo comum Delmar Marques, que morreu recentemente na fila do transplante e se foi aos poucos,. Sem poder dar seu depoimento, Delmar ainda assim escreveu algumas frases para Caco, que de maneira digna e emocionada revelou para o Brasil este jornalista importante que morreu sem que houvesse a repercussão devida pelo seu desaparecimento.

Quando fiz a homenagem aqui ao Delmar por ocasião da sua morte, disse que não sabíamos ainda o que tínhamos perdido, por nossa culpa, que não nos aprofundamos devidamente com nossos contemporâneos. Pois no programa Caco mostrou quem é Delmar e o quanto o Brasil perdeu com sua morte. Ele estava no auge do seu trabalho, disse Caco, que mostrou imagens de Delmar em atividade, cavalgando, viajando, divulgando a pesquisa que fez dos índios minuanos. Apresentou-o como jornalista, escritor, dramaturgo. Fez justiça num tom contido e contundente.

Caco Barcelos atingiu o coração da reportagem: é quando o repórter se coloca por inteiro naquilo que reporta, sem trair a objetividade nem a subjetividade implícitas neste nosso trabalho, tão mal compreendido. Jornalismo é Delmar Marques se apresentando em rede nacional e escrevendo suas últimas palavras para o repórter amigo, competente e talentoso.

Quando Delmar me telefonou da cama do Incor para falar um pouco comigo, com a voz trêmula e sumida, partindo meu coração aqui no ermo, ele me disse que Caco esteve lá, pressionando para que encontrassem um coração para ele. No fundo, a reportagem mostra como é difícil salvar uma vida na fila do transplante e como a morte de Delmar traumatizou os médicos e enfermeiras envolvidos neste evento tão doloroso para todos nós.

No coração da reportagem, Caco Barcelos nos devolve o jornalismo perdido, resgata o amigo e sua grandeza, nos coloca a par da grande perda que sofremos todos os dias, quando lutamos, muitas vezes em vão, pela vida que escapa por todos os lados. Longa vida ao jornalismo brasileiro, coração valente da nação que um dia voltará a ser soberana e orgulhosa dos seus filhos.

RETORNO - Imagem de hoje: Delmar Marques em viagem de pesquisa ao Exterior. Esta foto está no seu espaço no Orkut.

Nenhum comentário:

Postar um comentário