21 de junho de 2008

ARTE AFORA


Nei Duclós (*)

Lidergrama é a charada que se decifra para se chegar ao poema. As letras dos versos escondidos eram tiradas a esmo de uma dança de palavras. A descoberta da resposta exata nascia da consulta de pilhas de exemplares Lello, aquele dicionário que escoltava a cabeceira de meus pais nas noites intermináveis de inverno. Com capa cor de vinho, o roteiro seguro da língua indicava o sinônimo adequado, o sinal mais evidente, o significado oculto de tantas perguntas que se somavam nas edições do sagrado jornal de domingo.

Vendo assim, de óculos pendurados no rosto cheio de concentração, quando passávamos em direção ao nosso quarto, nos parecia que ali existia algo misterioso. Não pela charada em si, mas pela alegria serena, renovada toda semana, de chegar enfim às estrofes que coroavam o esforço. Sobre grandes travesseiros, minha mãe palmilhava os segredos propostos sem pedir ajuda a ninguém, pois a graça era enfrentar com poucas armas a dificuldade prazerosa, que enfim se consumava na solução.

Longe dali, eu ainda convivia, na lembrança, com aquela cena, quando comecei a publicar os primeiros poemas na imprensa da capital, exatamente na empresa que despachava o Lidergrama para a fronteira havia décadas. Num daqueles domingos, a composição da resposta revelou para a mãe ainda incrédula, uma das poesias que saíram do meu caderno para a multiplicação editorial.

Foi a confluência de duas artes por inumeráveis rotas. A mais óbvia é entre mãe e filho que se encontram sem aviso, surpresos do abraço que elimina distâncias. Mas há outras. Especialmente a comunhão das artes que sustentam a vida. Ambos nos encantávamos com as palavras. Até hoje guardo suas cartas, escritas com uma sinceridade que não era comum nas conversas ao vivo e que adquiriam o tom melancólico e comovente das situações eternas.

Ela tinha o dom e procurava, no exercício das charadas, intensificar essa sintonia fina entre trajetória pessoal e sonho, pela larga estrada do verbo impresso. Os livros a acompanhavam desde menina, quando era colocada, aos gritos, para debaixo da cama pela família assustada com revolução nos difíceis anos 1920; e quando era a colegial brilhante que completou a formação em Porto Alegre. A literatura fazia parte dela quando, noiva, posava ao lado do elegante cônjuge de fino bigode e olhar sedutor; e quando, mãe orgulhosa, levantava seus filhos recém nascidos nos braços, como se fossem taças de muitas vitórias. A consolava quando assumia o papel de preocupada vigilante dos estudos que se espalhavam por toda a casa. Temperava sua conversa quando cumpria a função de educada anfitriã na mesa farta, diante das visitas e rodeada de seus rebentos.

Lendo, e, eventualmente, escrevendo, foi a senhora séria que sofria com desvios de rumos dos mais rebeldes; e por fim a anciã precoce, de grossos óculos, mergulhada em lençóis e papéis quando tinha algo a resolver nos cadernos dominicais. Todas essas personas cultivavam a arte lendária das mulheres desta nação hoje em farrapos, que ela ajudou a construir com a paciência e a força de seus braços e com a doçura do seu grande coração.

Sem eu saber, essa era a arte que sempre me inspirou na hora de ler ou escrever. A fonte não era apenas a paisagem natural da terra lisa que se estendia até tocar o céu, no horizonte molhados pelo rio que separa nações, mas que une abismos. Brotava principalmente daqueles gestos que fecundavam sem exigir retorno, que protegiam porque essa era a missão, e que nos projetavam para frente porque esse era seu desejo.

Arte afora, a vida que levamos é esse mar formado por quem nos gerou e criou. Fomos adotados por Deus quando nascemos de seu ventre. Fomos sonhados antes de nascer. Palavras, no fundo, são os recipientes onde o orvalho familiar pousa o bico de beija-flor. Sorvemos aos goles a herança que nos garante o vôo.

As palavras de nada serviriam se não lutássemos com elas para chegarmos ao poema. Assim como de nada serviria esta passagem sobre a terra não fosse a percepção de que somos parte de algo maior, que nos transcende, como um raio de sol depois do vendaval.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: eu no colo da minha mãe, Dona Rosinha.

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